Publicidade institucional é ilegal

As comissões parlamentares de investigação trouxeram à tona parte do estarrecedor mar de lama sobre o qual navegava, extasiado, o governo federal. No centro do ainda obscuro panorama de delinqüência político-administrativa, situa-se um dos maiores sumidouros por onde se esvai quantidade gigantesca de dinheiro público. Aludo à mal-denominada propaganda oficial, transformada em eficiente instrumento de corrupção.

Equivocam-se os que vêem na regra do § 1.º do art. 37 da CF/88 o permissivo para as autoridades constituídas efetuarem gastos sob o falso rótulo de promover a publicidade dos entes públicos. Quem, no entanto, examinar detidamente o seu enunciado, verificará que a focalizada norma limita-se a estatuir, para a referida atividade, dois critérios manifestamente restritivos. Um deles veda a promoção pessoal dos respectivos ordenadores da despesa com publicidade de atos, programas, obras, serviços e campanhas. O outro estabelece inquebrantável vínculo da referida publicidade com mensagem de cunho estritamente educativo, informativo e social. Apesar da clareza da nota restritiva, acentuada no preceito constitucional, a nação, abúlica, coonesta a sistemática e generalizada perversão desse gênero excepcional de informação. Em meio à indiferença coletiva, o desprotegido erário é vítima de inestancável sangria não apenas para difundir proezas gerenciais como também fomentam a marca de empresas estatais, inclusive das que exploram setores monopolizados.

De outra parte, a secundária referência à publicidade das ações enumeradas no texto do § 1.º do art. 37 da CF/88, transmite a idéia de que ela obedecerá a sistemática dos atos normativos, divulgados pelos pelas gazetas oficiais, ou oficializadas, com a única diferença de poderem ser utilizados os diferentes meios privados de comunicação de massa. Portanto, é forçoso concluir-se que o referido dispositivo constitucional magno não autoriza o emprego dessa peculiar espécie de publicidade. Em verdade, também não a proíbe.

Daí porque a intencional e consagrada confusão do conceito de publicidade com o de propaganda e, em seguida, como propaganda daquilo que é dever legal do administrador realizar, agride a referenciada cláusula constitucional. Sublinhe-se que ela sequer menciona a propaganda, certamente porque o constituinte quis evitar a sub-reptícia utilização, no serviço público, do intrínseco caráter proselitista desse vocábulo.

Em todas as esferas governativas da federação, torram-se alentadas somas de recursos, com a ostensiva finalidade laudatória dos administradores, que, sem nenhum pudor, autorizam a despesa em causa própria. Caracterizam-se, pois, como propaganda eleitoral antecipada, em detrimento dos demais aspirantes ao cargo, razão pela qual a prática atrai as sanções previstas pela legislação eleitoral (art. 36 da Lei n.º 9.504/97). De modo especial, a propaganda levada a cabo em época distante do início do pleito, colide com o perfil democrático e republicano do Estado Brasileiro, não-intervencionista e avesso às ideologias, consoante o modelo desenhado pela Magna Carta de 1988. Um dos seus traços essenciais reside na nítida distinção entre Estado (art. 1.º) e governo (art. 37), por isso que enumerou os objetivos fundamentais do Estado (art. 3.º). Logo, descabe ao governo, mediante o emprego sistemático dos veículos de comunicação de massa, concretizar aquelas metas. O referido meio conspurca a finalidade. Tal gênero de conduta implica retroceder aos malsinados tempos do Departamento de Imprensa e Propaganda, do ditador Getúlio Vargas, e aos dos seus equivalentes contemporâneos: comunistas, nazistas, fascistas e quejandos. A missão doutrinária, em tese, é hoje confiada às organizações políticas e aos partidos. Aliás, estes são regiamente financiados com dinheiro público, que alimenta o fundo partidário (art. 38, da Lei n.º 9.096/95).

Além disso, conforme revelam as atuais investigações parlamentares, dos vultosos contratos publicitários contrabandeiam-se recursos para alimentar as secretas caixas de campanha política. A omissão do nome do administrador, da sua imagem ou de sigla partidária a que pertence, não é suficiente para ocultar o intuito de promoção pessoal, em vista da notoriedade de certas candidaturas. A propósito, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu: ?É automática a responsabilidade do governador pelo excesso de despesa com propaganda institucional do Estado, uma vez que a estratégia dessa espécie de propaganda cabe sempre ao chefe do Executivo, mesmo que este possa delegar os atos de sua execução a determinado órgão de seu governo?. (Acórdão n.º 21.307-GO TSE, j. 14/10/2003 Jurisp. Trib. Sup. Eleit., v. 15, n. 1, p. 224). Essa orientação jurisprudencial abrange os agentes responsáveis das três esferas da Federação.

A fim de analisar o lastro jurídico da viciosa prática em questão, consultei a legislação catalogada em ?site? estatal. Pois bem. A base legal da megalomaníaca e exuberante propaganda do governo Federal repousa na Lei n.º 4.680/65. É inacreditável, mas a ?farra? publicitária oficial se escora apenas nessa lei, que tem por objeto exclusivo a regulação do exercício profissional do publicitário e do agenciador de propaganda. Ela vem sendo alterada por decretos e instruções normativas, uns e outras dispondo sobre matéria atinente à propaganda governamental.

Se o painel da legislação de regência, exibido pela Secretaria de Comunicação Social, do governo federal, estiver correto, pode deduzir-se que as despesas efetuadas com propaganda institucional padecem de completa ilegalidade.

E, caso aquela leitura do § 1.º do art. 37 da CF/88 tenha procedência, deve-se admitir que a matéria nele veiculada é daquelas cuja aplicabilidade depende de integração legislativa, hoje inexistente. Dir-se-á, porventura, que a lei orçamentária supre o apontado vazio legal. Sem razão, porquanto a lei de meios, baseada em cálculos estimativos, somente faz a previsão da receita e da despesa pública. A discriminação das verbas por programas, supõe a correspondente legislação específica anterior.

Assim, enquanto o legislador ordinário não conferir operacionalidade ao focalizado dispositivo constitucional, cabe, a uma das partes legitimadas pelo art. 103 da CF/88, propor ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de suspensão cautelar dos decretos e instruções normativas, que parasitam a Lei n.º 4.680/65. Uma vez obtida a tutela provisória, seria prontamente estancada a sangria do dinheiro público e obstruída uma das vertentes da parcialmente desvelada corrupção político-administrativa nacional.

Obviamente, as campanhas de educação sanitária, informes sobre vacinação e análogas iniciativas (art. 23, II), ou de providências como as reclamadas por estados de calamidade pública, desfrutam do necessário suporte jurídico, inserto nas leis orgânicas dos Ministérios incumbidos de gerir cada um desses setores.

Talvez, o efeito do ?vacuum legis? pressione o legislador nacional, o estadual e o municipal (a matéria é de Direito Administrativo) a estabelecer diretrizes específicas para a comunicação dos seus governos com a sociedade. Deverão separar expressamente a publicidade obrigatória da publicidade circunstancial. A obrigatória, compreendendo os atos geradores de direitos e obrigações (leis, decretos, portarias, contratos etc.), abrangendo a administração direta e a administração indireta. A circunstancial, poderá ser implementada adotando-se os pressupostos da desapropriação (art. 5.º, XXIV, da CF/88), ou seja, para atender, segundo a gradual importância, reclamos de utilidade pública (informação) necessidade pública (educação) e interesse social (orientação), nos precisos termos do disposto pelo § 1.º do art. 37 da CF/88.

Convém assinalar que a solução acima proposta contrapõe-se ao projeto populista, justificado pelo suposto compromisso de os governantes informarem a sociedade acerca de todos os negócios públicos. Sem dúvida, dita espécie de populismo oculta postura anti-representativa, à medida em que, a pretexto de abrir canais de comunicação direta com o povo, na verdade, os detentores do poder visam ampliar o seu controle político.

O caminho correto é o inverso. Do povo é que deve partir a iniciativa de colher as informações concernentes ao desempenho dos governos, seja através de seus representantes seja diretamente. Ademais, a capilaridade do sistema burocrático permeia a sociedade e o território. Por intermédio dessa extensa rede de agências, os governos podem manter a população a par de suas realizações e dos benefícios delas decorrentes. E se comunicará de forma rigorosamente impessoal, como determina do art. 37 da CF/88. Entrevistas coletivas, freqüentes e de pauta aberta, acertadas com os meios de divulgação sequiosos de notícias, completam o diálogo democrático com a sociedade. Assim, os recursos até aqui dilapidados na famigerada propaganda institucional, voltarão a custear as despesas com saúde, educação básica, segurança coletiva e outros serviços públicos essenciais.

Reginaldo Fanchin é advogado em Curitiba. refan@terra.com.br

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