Profissionalização da função pública: a experiência brasileira

No Direito brasileiro, a questão da profissionalização da função pública encontra-se intimamente ligada aos postulados constitucionais. Neste trabalho, o tema será tratado utilizando-se como referência a Administração Pública, aparelhamento do Estado que se encontra voltado, por excelência, à satisfação cotidiana das necessidades coletivas.

O art. 1., da Constituição pátria estabelece que ?A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania; a cidadania, a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político?. Se a cidadania e a dignidade da pessoa humana constituem fundamentos do Estado, o interesse perseguido com o exercício da função administrativa deve encontrar seu principio e fim no interesse dos próprios cidadãos, tanto numa perspectiva individual, quanto coletiva.

Na Itália, Andrea PUBUSA sustenta que, diante do principio democrático e da soberania popular, inexistem interesses do Estado ou dos seus aparatos que não sejam instrumentais em relação à comunidade. ?O funcionário não serve o governo e comanda os cidadãos, mas serve exclusivamente os cidadãos?. A Administração não cuida de interesses do Estado, mas de interesses dos cidadãos.(1)

O contexto espanhol não é diverso. Luciano PAREJO ALFONSO lembra que a condição democrática do Estado enquanto Estado de Direito constitui a própria base da Administração Pública. Bem por isso é exigida da organização e funcionamento do Estado em seu conjunto, a legitimação de todas as suas estruturas, e, portanto, de todo exercício de poder mediante sua recondução direta ou indireta ao povo.(2) Sobre estas bases, a Administração Pública aparece como ?poder estatal, igual ao Estado e ao mesmo tempo, organização (sujeito), função (atuação ou atividade) e ordenamento (dotado de uma economia e lógica próprias no seio do ordenamento geral do Estado). (3)

A Administração Pública legitima-se quando age em conformidade com o interesse público. Neste contexto, a profissionalização da função pública constitui instrumento de legitimação da Administração Pública brasileira perante o povo: (i) primeiro, para garantir a observância do princípio da igualdade na escolha de seus agentes, a partir de critérios que possibilitem a aferição daqueles mais preparados para o exercício da profissão, e não num status atribuído em razão de um direito de nascença ou pela proximidade pessoal com os governantes; (ii) segundo, para dar cumprimento ao princípio da eficiência, de uma Administração capacitada a responder aos anseios coletivos mediante a prestação de serviços adequados.

A Constituição de 1988 inaugurou um capítulo dedicado à Administração Pública.

A disciplina constitucional administrativa conta, hoje, com novos arsenais jurídicos para alteração do quadro tradicional de uma Administração Pública marcada pela pouca atenção dispensada aos direitos e garantias integrantes do patrimônio do cidadão-administrado. Afeiçoado à visão da legalidade a qualquer custo, com desconsideração a outros valores (como, por exemplo, o contido no princípio da confiança), o Administrador atuou, por muito tempo, coberto pelo manto da incontestabilidade do interesse público.

A finalidade pública está compreendida no principio da impessoalidade administrativa. Sua observância pela Administração previne o ato praticado de qualquer sentido de individualismo, posicionando-o em conformidade com o bem comum. Se o bem comum não se confunde com a soma dos interesses individuais, deles também não prescinde. O Estado constitui um meio para que os indivíduos e as corporações nele atuantes possam atingir seus respectivos fins particulares. O sentido do bem comum é informado pelas necessidades de cada um e da comunidade.

A expressão poder, estigmatizada durante o período ditatorial brasileiro, encontra-se melhor entendida como prerrogativa ou como função. Caso o Administrador Público utilize seu poder além dos limites que a lei lhe confere ou pratique desvio da finalidade pública, há abuso de poder na modalidade do excesso ou do desvio da finalidade.

A licitação e o concurso público configuram, no Brasil, os dois principais instrumentos de garantia da profissionalização da atividade administrativa. Ambos os certames destinam-se à seleção de agentes qualificados, do ponto de vista técnico, para o desempenho de atividades inerentes à Administração Pública.

Consagra-se, pois, o princípio da acessibilidade aos cargos, empregos e ao exercício de serviços públicos mediante concurso público e licitação, como regra, prevendo-se raríssimas exceções: no caso de admissão de servidores, a livre nomeação e exoneração para os cargos em comissão. Em se tratando de licitação, a dispensa e a inexigibilidade.

A profissionalização do servidor público substancia um ponto forte da reforma administrativa operada pela Emenda Constitucional n.º 19, de 4 de junho de 1998. O preparo técnico para o desempenho de cargo, emprego ou função pública é condição sine qua non para avaliar a eficiência do servidor público.

Antes da Constituição de 1988, o concurso público era exigido somente para a primeira investidura em cargo público, o que permitia a transposição ou ascensão funcional, ato pelo qual o servidor passava de um cargo a outro de conteúdo ocupacional diverso, mediante concurso interno. Tratava-se de um sistema de mérito no serviço público, que premiava os servidores que buscavam o aprimoramento na profissão. Todavia, o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o inc. II, do art. 37, da Constituição, entendeu banida do ordenamento jurídico a ascensão funcional como forma de provimento de cargo público efetivo.(4) Por construção jurisprudencial, acabou-se por eliminar um dos mais importantes institutos de profissionalização do servidor público.

Polêmica continua sendo a possibilidade constitucional do acesso, forma de provimento pela qual o servidor passa para cargo de maior grau de responsabilidade e maior complexidade de atribuições, dentro da carreira a que pertence (plano vertical). Sobre este instituto, lúcida a ponderação do Ministro Marco Aurélio de MELLO, ainda que anteriormente à Emenda Constitucional n.º 19/98: ?Dizer-se, a esta altura, que a passagem de um para outro cargo da mesma carreira somente é possível pela via do concurso público é afastar as perspectivas do servidor quando do ingresso no serviço público, esvaziando-se o significado do artigo 39 da Constituição Federal no que, ao prever a adoção do regime jurídico único, alude ao implemento do plano de carreira.(5) Proibir o acesso funcional importa desestímulo dos servidores públicos, com graves prejuízos para a Administração Pública. A impossibilidade de alcançar cargos mais elevados, na carreira, não condiz com a necessidade de estimular o aprimoramento profissional necessário à prestação de serviços adequados pela Administração Pública.

A implementação de um sistema de mérito no funcionalismo público é emergencial. A profissionalização da função pública exige não somente o fortalecimento do concurso público (e a necessidade de se privilegiar interpretações restritivas quanto aos cargos em comissão que constituem exceção à regra do concurso), como também um adequado plano legislativo de carreira, em todos os níveis da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).

A profissionalização do servidor público, a instituição e o fomento de escolas de administração pública, a exemplo do que ocorre na Espanha, haverão de propiciar uma preparação intelectual e, sobretudo, deontológica dos operários públicos.

A desprezar-se o sistema de mérito, estaríamos sepultando a esperança e cometendo uma atrocidade comparável ao ?apagar do arco-íris? na feliz construção do escritor, ator e compositor brasileiro Mário Lago, de iluminada existência.

Notas:

(1) PUBUSA, Andrea. Dirittì dei cittadini e pubblica amministrazione. Torino : G. Giappichelli Editore, 1996. p. 49.

(2) PAREJO ALFONSO, Luciano. La administración. Función pública. In: ENTERR:A, Eduardo Garcia; CLAVERO AREVALO, Manuel. (Directores). El derecho público de finales de siglo: una perspectiva iberomericana. Madrid : Civitas, 1997. p. 289.

(3) PAREJO ALFONSO, op. cit., p. 291.

(4) Nesse sentido: Supremo Tribunal Federal. ADin 2433IRN. Relator: Ministro Maurício Corrêa.. DJU 24.8.01. Tribunal Pleno. Unânime.

(5) Supremo Tribunal Federal. Ação direta, de inconstitucionalidade n.º 23 1. Revista de Direito Administrativo, n.º 191.

Romeu Felipe Bacellar Filho é doutor em Direito do Estado, professor da UFPR e da PUC/PR. Advogado. Presidente do VI Congresso Paranaense de Direito Administrativo, que acontece de 9 a 10 de junho em Curitiba.

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