Processo e recurso

Há muito se vem debatendo a respeito da morosidade do andamento dos processos judiciais e as [eventuais] alternativas para que se imprima a agilidade necessária, buscando a rápida [e indispensável] solução dos litígios apresentados ao Poder Judiciário. Evidentemente que as [recentes] alterações no Código de Processo Civil deram, por assim dizer, certa agilidade à liquidação de sentença; a [necessária] informatização do processo judicial, e assim por diante. Mas, a possibilidade de recurso contra decisões interlocutórias proferidas no curso do processo é algo deveras peculiar. Note-se que o agravo [de instrumento ou retido] é o instrumento processual colocado à disposição da parte para rediscutir as decisões monocráticas, e a interposição de tal recurso – não raras vezes – prejudica [e muito] o andamento do processo. É fato que quase todas as decisões judiciais tendentes ao andamento do processo são passíveis de agravo, e esse é o ponto nevrálgico. Com efeito, se deu um lado existem os princípios do processo recorribilidade e duplo grau de jurisdição [permitindo, pois, que a parte tenha direito a que seus pleitos sejam apreciados e decididos por dois juízos distintos], de outro há a necessidade de se considerar os princípios da boa-fé e lealdade processual. Mais do que isso, e em sendo evidente que as partes litigantes defendem interesses privados, circunscritos a sua esfera jurídica, cabe ao juiz compor esses interesses, buscando, em última análise, a pacificação social.

Entrementes, verifica-se no dia-a-ida do foro que existem entraves processuais criados sem qualquer fundamento jurídico, alegações minimamente razoáveis, ou ainda, e o que é pior, com verdadeiro espírito emulativo e procrastinatório, especialmente dos que não têm muito a perder e o fato de o processo se arrastar lhes é benéfico. Não raras vezes, esses “entraves” se materializam, tomam forma justamente em agravos de instrumento sem fundamento e tendentes, isso sim, a frustrar o objetivo da tutela jurisdicional. Portanto, se é certo que o art. 5º, LV da Carta Política é o norte quanto a recorribilidade das decisões judiciais, não menos certo que nem todas as deliberações do juiz de primeiro grau deveriam ser passíveis de recurso.

Há de se pensar em fortalecer os poderes do julgador de primeiro grau [os denominados juízos da causa], com remotas possibilidades recursais, e não ao contrário. Sabe-se, e a lei processual civil abre esta ampla porta; que o agravo de instrumento pode ter efeito suspensivo ou mesmo suspensivo ativo, por determinação do tribunal, e em significativo número de casos recursais o processo [aquele cuja competência é do juiz singular] simplesmente pára, adormece por longo e prejudicial período, quando emprestado esse efeito suspensivo. Isso é bom para aquele que não tem outra pretensão além de obstar o regular andamento do processo. Emprestar efeito suspensivo a determinado recurso se pode torna bastante temerário, por assim dizer, e põe em risco até mesmo a correta solução do caso concreto, que sempre carece de urgência. Em casos de falência ou de recuperação judicial é de todo evidente que um recurso pode simplesmente brecar o andamento regular do feito. A suspensão de atos processuais pode representar sérios prejuízos a outros credores que também fazem parte da massa falida subjetiva, quando se fala em processo falencial. Não raras vezes se vê o perecimento, o sucateamento de bens arrecadados enquanto se aguarda pacientemente a solução de recursos, como dito, não raras vezes interpostos com fins protelatórios, ou por mero capricho, imperando o interesse pessoal em detrimento do coletivo. A suspensão do feito, determinada pelo tribunal superior, pode simplesmente atravancar o andamento de importantes atos processuais [e quase sempre isso ocorre], causando até mesmo perecimento de direito. Talvez a possibilidade de se desafiar as decisões interlocutórias no curso da falência ou da reorganização judicial pudesse ser obstada, pois nem sempre será razoável, proporcional em relação aos demais interessados [e ao próprio Estado e à sociedade]. A pletora de agravos, notadamente em processos regidos pela Lei 11.101/05, certamente põe em risco até mesmo os poderes do magistrado de primeiro grau no que diz com a condução dos atos processuais.

Isso porque, pensando-se que tudo será reexaminado pelo tribunal, certamente, além da inevitável procrastinação, haverá certa desestabilização do processo perante o juízo de primeiro grau. O ditame do Código de Processo Civil e das leis esparsas aí incluída a lei falencial – é que ocorra celeridade processual, observados [sempre] os demais princípios que regem o processo e o procedimento. Mas não se deveria permitir que as decisões proferidas em sede de falência ou de reorganização judicial fossem, sempre e invariavelmente, passíveis de serem desafiadas por tal modalidade recursal. Isso se constitui verdadeiro retrocesso, e prejudica sensivelmente os atos a serem desenvolvidos no âmbito das ações regidas pela lei especial, ações essas que [também] têm interesse público relevante [interessa ao Estado e à sociedade como um todo, as repercussões da falência ou da crise da empresa]; carecem de solução consentânea com a realidade e não podem ficar na dependência de julgamento de recurso pelo tribunal, relembre-se. Por exemplo, a decisão que conceder a recuperação judicial poderá ser desafiada por recurso de agravo de instrumento por parte daquele credor, por assim dizer, insatisfeito com o conteúdo do despacho. Pode tal recurso, sem sombra de dúvida, simplesmente, desestabilizar o andamento da reorganização judicial. O fato de o interessado ter à sua disposição tal meio recursal [o agravo de instrumento], acaba por enfraquecer a autoridade da decisão judicial proferida pelo juiz singular, que, repita-se, está totalmente enfronhado com o que de fato, de real, ocorre no processo de recuperação judicial.

Não é de agora que a doutrina de vanguarda vem enfrentando a questão, pois assim escreveu o J. J. Calmon de Passos: os juízes de primeiro grau, ou primeira instância, justamente aqueles que em toda democracia são os mais importantes em termos de boa prestação da atividade jurisdicional, foram transformados em ‘fetos de magistrado’, como costumo denominá-los. Explico porquê. Aos tribunais foram alocadas as atribuições de recrutamento, seleção, nomeação, aperfeiçoamento, apuração de merecimento dos magistrados de primeira instância, inclusive poder disciplinar sobre eles e até orientação coercitiva de natureza técnica. Nenhuma independência ou autoridade tem o juiz de primeiro grau em face de seus ‘superiores’, os eminentes desembargadores que integram os tribunais de apelação nos Estados e os juízes dos tribunais regionais, na área da Justiça Federal e do Trabalho, para só aludirmos aos principais”(1).E o jurista, agora tratando especificamente das possibilidades recursais, assevera que os julgamentos do primeiro grau estão desmoralizados por força de um sistema de recursos engendrado para fortalecer a posição dos tribunais, permissivo de liminares deferidas por relatores ou presidentes de tribunais suspendendo a eficácia de decisões de primeiro grau, muitas vezes, elas sim, configurando flagrantes ilegalidades e comumente despojadas da fundamentação séria que a gravidade do ato estava a exigir. Estes males foram exacerbados com a infeliz e perniciosa reforma recente do agravo de instrumento, que apenas serviu para exacerbar a desqualificação do juiz do primeiro grau, desfigurar o processos e torná-lo mais burocratizado. E finaliza o pensador: daí o dizer comum a todos os advogados de que o importante é obter celeremente a decisão do primeiro grau, seja ela qual for, “porque em verdade quem decide a causa é o tribunal’. O que isto representa de descrédito e fragilização do julgador mais importante para a sociedade e de agravamento do curso temporal do processo a prática o está demonstrando(2). Ovídio A. Baptista da Silva, tem o seguinte entendimento: os recursos são, ao mesmo tempo, expressão de desconfiança no magistrado de grau inferior, e esperança depositada nos escalões superiores da hierarquia judicial, até que se atinja seu grau mais elevado, contra cujas sentenças não mais caiba recurso. O sentido burocrático, inerente à idéia de recurso, revela-se muito claro quando consideramos que, no direito romano clássico, não havia recursos”(3). E prossegue: à medida que descemos na escala hierárquica, reduz-se a legitimidade dos magistrados e avolumam-se os recursos, até atingirmos a jurisdição de primeiro grau, que o sistema literalmente destruiu, sufocando-o com uma infernal cadeia recursal que lhe retira a própria ilusão, de que ela poderia alimentar-se, de dispor de algum poder decisório. A legitimidade da jurisdição de grau inferior diminui na medida em que aumentam os recursos. Essa ideologia é mais uma expressão do componente autoritário da cultura jurídica moderna, incapaz de lidar com a “diferença, com a riqueza do indivíduo e, conseqüentemente, com os casos concretos; é o testemunho de que nos conservamos fiéis a Savigny, praticando a recomendação que ele nos dera de fugir das complexidades da vida real, para ocultar-nos nas certezas das figuras geométricas, cujas verdades, sendo universais e eternas, podem ser normatizadas, ao passo que o caso concreto que é a matéria-prima com que laboram os práticos -, como fenômeno histórico, portanto individual, não se submetem a regras, às normatizações esquemáticas, que é o princípio sob a qual as instituições processuais foram plasmadas(4). E o pensador vai [bem] mais além, enfrentando diretamente as mazelas do ensino jurídico no Brasil, fazendo constar que não devemos alimentar esperança de conquistar algum progresso real na busca de um serviço judiciário eficiente e de boa qualidade, se não extirparmos o dogmatismo de nossa formação universitária. Esta será a condição inicial que nos dará acesso a uma perspectiva crítica do Direito. Será um primeiro passo, indispensável, para recuperar nossa autonomia crítica. Simultaneamente, havemos de renunciar ao sonho do Iluminista de transformar o Direito numa ciência abstrata e formal, construída com puros conceitos, com vocação, como todo conceito, para a eternidade(5). Crê-se, então, e pelo menos na seara do direito falimentar, que o magistrado de primeiro grau deveria ter mais poderes, poderes esses não mitigados pelo grau recursal superior, via efeito suspensivo em agravo de instrumento para obstar o andamento de processo. A medida seria mais do que salutar pois assim o juiz de primeiro grau, aquele que está afeito à matéria, sem dúvida teria mais condições de impulsionar a falência ou a reorganização judicial de forma mais célere, tal como propugnado pela Lei 11.101/05. Consoante assevera Ovídio A. Baptista da Silva em sua obra de fundamental importância para os estudantes de direito, cabe ao juiz condutor do processo pensar na coletividade, e não no individual [individualidade colocada em significativo relevo pelo Iluminismo]; é de se levantar a bandeira da racionalidade material(6). E ainda neste tópico, escreve o mesmo jurista acerca de uma das possibilidades para remodelar o sistema jurídico atual, e que talvez já esteja saturado. Assevera que se quisermos conferir ao Poder Judiciário a missão que lhe cabe como fiador de um regime democrático que, ao contrário de nossa democracia representativa, realmente distribua poder: será a severa redução dos recursos, com o conseqüente abrandamento do sentido burocrático da administração da Justiça, restituindo à jurisdição de primeiro grau legitimidade que lhe dê condições de exercer as elevadas atribuições que a ordem jurídica lhe confere(7). Cabe repensar a respeito.

Notas:

(1) Direito, Poder, Justiça e Processo. Rio de Janeiro:Forense, 2003, p. 110. Grifos no original.
(2) Op.cit., p. 113. Em nota de rodapé, o jurista assim se posiciona: Pois bem, no Brasil, ao invés de tornarmos as interlocutórias irrecorríveis, reforçando a autoridade do juiz do primeiro grau e evitando delongas processuais, a recente reforma do Código de Processo Civil, em nome da modernização, manteve a recorribilidade de todas as interlocutórias e o que é profundamente inexplicável e escandaloso, transferiu o agravo para os tribunais, que deles conhecem originariamente, atribuindo ao relator do recurso o poder de suspender os efeitos da decisão de primeiro grau. Op. cit., p. 112.
(3) Processo e Ideologia. O Paradigma Racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2.ª ed., 2006, p. 239.
(4) Op. cit., pp. 239/240.
(5) Op.cit., p. 265.
(6) Pensamento de Immanuel Wallerstein, citado na obra Processo e Ideologia, p. 319.
(7) Op. cit., pp. 319-320.

Carlos Roberto Claro é advogado; professor [Adjunto I] de Direito Comercial, no Unicuritiba; professor na pós-graduação [lato sensu] da mesma instituição de ensino; mestre em Direito [área de concentração: Direito Empresarial e Cidadania] pelo Unicuritiba, e membro do American Bankruptcy Institute [Virginia – USA]

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