Por trás das aparências

O Ministério Público (MP) está encarregado de: a) processar os criminosos; b) defender o regime democrático, o meio ambiente, o consumidor, o patrimônio público; c) combater a improbidade administrativa; d) defender crianças e adolescentes, idosos, pessoas portadoras de deficiência e pessoas discriminadas em geral; e) zelar para que os poderes públicos e os serviços de utilidade pública obedeçam aos direitos constitucionais.

Embora pertença ao Estado, o MP não é governo. Ou seja, tem autonomia funcional para decidir o que fazer, apenas limitado pela lei. Não deve obediência a governantes, políticos, empresários, banqueiros, FMI

Para cúmulo da perplexidade, cada agente do MP (promotores de justiça e procuradores da República) tem independência funcional até mesmo em face de seus chefes, os procuradores-gerais!

Isso é efetivamente mirabolante, convenhamos. Num país que está entre as 10 maiores economias do mundo, mas onde a maior parte da população vive na pobreza absoluta e onde as regras que valem para a minoria não são as mesmas que valem para todos Å falar em MP independente é utopia. Após duas décadas de ditadura militar, tomado por um arroubo de ousadia, o constituinte de 1988 sonhou criar um país voltado para o social, e encarregou o MP de fiscalizar essa transição. Deu-lhe garantias idênticas às da magistratura, e seus promotores e procuradores têm poderes para investigar diretamente.

Mas o que aconteceu de 1988 para cá?

No início, a sociedade e os promotores acreditaram que a mudança era para valer. O MP começou a trabalhar como nunca, e começou a alcançar pessoas até então intocáveis: os que desviavam dinheiros públicos e praticavam a grande criminalidade econômica.

Sem dúvida, houve erros e excessos. Primeiro, pela falta de prática. Quando é que, antes de 1988, um presidente, um governador, um ministro foi processado por um MP independente? Quando é que, antes de 1988, o MP trabalhou sem receber ordens do governante?

Também houve falhas técnicas, como querer pedir a perda de cargo de autoridades junto a juízes singulares, embora algumas autoridades tenham forma própria de investidura e destituição asseguradas na própria Constituição. Houve ainda deslumbramentos com o acesso da imprensa: exposição excessiva à mídia para membros do MP, em vez de discrição, técnica e muito estudo.

Entretanto, os erros foram compensados pelas vantagens: o efetivo combate aos milhares de casos de ataque sistemático aos dinheiros públicos. Até porque os erros têm correção, pois os juízes podem e devem recusar investigações sem justa causa; além disso, quando ajam com fraude ou má-fé, os membros do MP podem ser responsabilizados pessoalmente.

Entretanto, na última década, surgiu um movimento claro para evitar que o MP continue a pôr suas manguinhas de fora Inúmeras medidas provisórias limitaram o alcance da ação civil pública. Busca-se criar a Lei da Mordaça para os agentes da autoridade que investigam, excepcionando o princípio da publicidade, que é regra na administração. Quer-se garantir foro por prerrogativa de função até mesmo para ex-autoridades Por fim, há uma sistemática campanha para mover ações de responsabilidade civil contra os membros do MP.

Tudo isso faz parte de um processo de intimidação. Ou seja, agora os políticos e administradores se dão conta de que não poderiam ter dado todos os poderes, toda a independência, toda essa autonomia para o MP. Afinal, apesar dos erros, o MP está começando a agir para valer, e isso tem embaraçado seriamente os administradores, políticos e empresários que até hoje sempre estiveram livres para corromper e ser corrompidos, garantindo permaneça o Brasil nesse confortável lugar de potência econômica num país socialmente subdesenvolvido.

Dá-se destaque a abusos de jovens promotores que fazem declarações açodadas sobre a culpabilidade de pessoas sujeitas a meras investigações. Abusos existem; podem ser sanados com os mecanismos atuais para defesa da privacidade e combate à quebra do sigilo funcional. Mas tentar garantir foro especial para ex-autoridades Å isso é mais do que um ato isolado. É uma técnica que consiste em calar as investigações e em tentar tirar dos promotores e procuradores independentes o poder de investigar e processar, passando-os para os procuradores-gerais (chefes do MP), esses ainda escolhidos pelo Poder Executivo!

O passo seguinte será alterar a Constituição para voltar à antiga forma de livre escolha e livre demissibilidade dos procuradores-gerais, para que nenhuma autoridade (ou ex-autoridade) possa ser processada a não ser e apenas por uma única pessoa: o chefe do MP, escolhido e livremente demitido pelas próprias autoridades a quem só eles podem garantir a impunidade

Essa é a verdade que precisa ser dita.

A sociedade vai aceitar quieta esse atentado?

Hugo Nigro Mazzilli

é ex-presidente da Associação Paulista do Ministério Público, advogado, consultor jurídico, autor de diversos livros jurídicos.

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