Violência não afeta os sonhos das crianças

Ninguém pode tirar de ninguém o direito de sonhar. Imaginar e querer ter uma bicicleta, um videogame, um computador. Sonhar em ser médico ou advogado quando crescer. E até morar em um outro lugar. Sonhos de quem mora em bairros nobres? Não.

Sonhos de qualquer criança. Nem mais a dura realidade consegue acabar com o sonho de alguém. Sonhar pode parecer nada condizente com o dia a dia difícil. Mas as crianças tudo podem.

E, como crianças, fazem exatamente o que precisam fazer. Sonham com um futuro melhor, mesmo em meio à lama, pobreza, dificuldades e violência. Essas são as crianças que moram nas vilas União e Icaraí, no bairro Uberaba, em Curitiba.

A população ainda sente medo de conversar após a chacina que matou oito pessoas, há pouco mais de uma semana. Ninguém sabe o que vai acontecer e evita qualquer tipo de vacilo. As mães revelam que, mesmo sem nada terem visto, as crianças se impressionam com as notícias de violência. Sabem direitinho o que está acontecendo.

“A gente faz de tudo para proteger nossos filhos”, diz uma mãe da Vila Icaraí. “Minha filha começou a chorar quando ouviu a notícia no rádio”, conta outra mãe, na Vila União.

Os dias de temor não afetaram os sonhos, ainda mais exacerbados com a proximidade do Dia das Crianças. Fernando, de 10 anos, quer um computador para “jogar joguinho depois que eu voltar do colégio”.

Karine, 5 anos, quer um quarto só para ela, de princesa. Hoje, ela já usa maquiagem, pinta as unhas e anda toda arrumadinha. O quarto novo é o mesmo desejo que têm os seus irmãos, Brayan e Adriane. Thiago, 9 anos, quer um carrinho de controle remoto; Fagner, 8 anos, um videogame. Felipe, 13 anos, e Anderson, 12 anos, também. Joslaine, 11 anos, quer mais: um computador e uma bicicleta.

Mais do que os sonhos materiais, estas mesmas crianças pensam em seguir carreiras que dependem de muito estudo. Thiago quer ser construtor, “para construir casa para um monte de gente”.

Fágner pretende ser policial, para “prender os ladrões”. Felipe pensa em ser advogado, “para soltar pessoas inocentes da cadeia”. Joslaine quer ser médica. Salvar vidas e “operar a barriga” de todo mundo. Do sonho para a realidade é um passo muito largo. Porém, não impossível em uma vida que ainda está só começando, mas que necessita de muita ajuda.

Lazer é “antídoto” contra o ambiente de estresse

A “contaminação” da rotina diária de milhares de famílias pela violência pode gerar nas crianças o transtorno de estresse pós-traumático.

Fatos como a aglomeração de pessoas ou determinados sons, por exemplo, ficam associados à violência e levam ansiedade para os pequenos.

“São elementos que se emparelham e levam as crianças a se sentirem ansiosas. Qualquer situação pode gerar ansiedade”, comenta Américo Agostinho Rodrigues Walger, professor de psicologia da educação da Universidade Federal do
Paraná (UFPR).

De acordo com ele, esse contato “íntimo” com a violência pode ainda ocasionar sonhos com flashback, dificuldades de concentração e até sentimentos de culpa.

Uma alternativa coletiva para essas crianças, a médio prazo, seria levar eventos de lazer, esporte e cultura para estas comunidades.

Promover atividades que fizessem as crianças pensarem em posturas mais positivas para a região onde vivem.

“É possível fazer um outro tipo de realidade. As crianças passam a enxergar ali outras possibilidades a não ser a violência. Se não houver alternativas, o evento traumático continua”, explica o professor.

Sobre os sonhos de profissão das crianças das vilas União e Icaraí, Walger comenta que podem estar relacionados com a percepção ,da injustiça social e o desejo de mudar uma realidade. Mas também é necessário levar em consideração o sentimento que muitos têm em “dar o troco”.

O professor cita, para ilustrar, um estudo em que meninos de rua disseram que gostariam de ser policiais. “Muitos queriam ser policiais para revidar a pressão que sofrem. Pensam: “Já que eu sofri, quero fazer os outros sofrerem”. A injustiça social é uma das grandes questões da violência urbana”, avalia. (JC)