O trabalho escravo persiste no Brasil

Escravo: quem está sujeito a um senhor, como propriedade dele. Escravidão: falta de liberdade, sujeição, dependência, submissão, servidão. Regime social de sujeição do homem e utilização de sua força, explorada para fins econômicos, como propriedade privada. Essas definições do Dicionário Aurélio remetem à idéia da escravidão do Brasil Colônia, quando os proprietários de terras traziam africanos para realizar todos os tipos de serviço em um regime de total servidão. Mas o que acontece hoje em dia não está longe desses parâmetros. O governo federal estima que existam 25 mil trabalhadores escravos no País. São pessoas que se deixaram levar pelas promessas de emprego, de dinheiro, e acabaram presas em propriedades, necessitando trabalhar para tentar se livrar de seus “senhorios”.

Há diferenças na escravidão que acontecia no século XIX e a de hoje. No passado, os africanos vinham para o Brasil e não recebiam nada pelos serviços. Eram considerados mercadorias. Atualmente, os “empregadores” pagam salário, mas cobram muitos quesitos do trabalhador, resultando em uma dívida sem fim. Os empregados são obrigados a pagar pelas ferramentas de trabalho, roupas, produtos de higiene pessoal, comida, casa. Normalmente vão para locais distantes, e precisam comprar tudo em mercearias dentro das fazendas, onde os preços estão bem acima daqueles praticados fora dela. “A escravidão até o século XIX era uma das formas de trabalho compulsório. Existiam outras, como a servidão por dívidas, o que ocorre atualmente”, explica Carlos Lima, professor adjunto do departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Gatos e capangas

O processo da escravidão ilegal é realizado por um “gato”, pessoa que recruta trabalhadores para executar tarefas como a derrubada de mata, manutenção de pastos, exploração de madeira, produção de carvão vegetal e plantações, entre elas as de cana de açúcar, algodão e laranja. Os abordados ficam iludidos com a possibilidade de ganhar dinheiro e aceitam a proposta, mesmo sem conhecer as reais condições de trabalho. Eles são levados para lugares distantes de onde moram, dificultando ainda mais uma possível, e remota, volta. “Os trabalhadores recebem um adiantamento e o gastam antes de viajar. Quando chegam no local, é cobrado o valor da passagem e outras coisas. Eles nem começaram a trabalhar e já estão endividados”, comenta Jelson Oliveira, secretário executivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Paraná. “E ainda há os casos em que os trabalhadores têm os olhos vendados para que não saibam o caminho. Alguns têm os calcanhares cortados para dificultar a fuga, além de serem vigiados por capangas e trabalharem acorrentados”, completa.

Agronegócio escravagista

A maioria das vítimas do trabalho escravo é de homens, jovens, desempregados e analfabetos. Essas pessoas saem principalmente de estados pobres, entre eles Piauí, Maranhão e Pernambuco. A maior região receptora desse regime é o Pará. “Isso se deve à expansão do agronegócio. O Pará é a nova fronteira agrícola do Brasil”, explica Oliveira. Assim, os homens recrutados fazem toda a preparação da terra para a futura plantação.

Para o integrante da CPT, a perpetuação do trabalho escravo no País se deve a dois problemas principais: a pobreza e a impunidade. “Nós temos casos de políticos envolvidos nisso. E ainda são casos repetidos. Há fazendas que foram fiscalizadas dez vezes e nada foi feito. Simplesmente uma multa é aplicada”, conta Oliveira.

A falta de estrutura ajuda a dificultar as atividades do Ministério Público do Trabalho, que possui um grupo móvel de fiscalização. O apoio de pessoal qualificado e dinheiro são insuficientes, sem contar a burocracia. “Entre a denúncia e a visita, se passa um mês. Já deu tempo para o fazendeiro acabar com as pistas”, acredita o secretário executivo.

Expropriação

Pelo menos um dos pontos burocráticos está para ser resolvido. No último dia 11, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou a emenda à Constituição que autoriza a União a expropriar a terra onde for encontrado trabalho escravo. Qualquer propriedade nessas condições não renderá nenhum tipo de indenização e será destinada à reforma agrária. A medida, depois de passar pelo Senado, segue para análise de uma comissão especial e depois vai ao plenário da Câmara.

Essa proposta faz parte do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo, lançado pelo governo federal em outubro do ano passado, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), e que inclui diversas ações, de curto e médio prazos.

“O Brasil ainda tem um pé no latifúndio”

Segundo o Ministério Público do Trabalho, o regime de escravidão também acontece em grandes propriedades, inclusive em empresas multinacionais. O problema existe nas regiões normalmente ligadas a latifúndios, como Pará, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, interior da Bahia e norte de Minas Gerais. “O Brasil se modernizou, mas continua com um pé no latifúndio”, opina Jelson Oliveira, da Pastoral da Terra.

As fiscalizações também encontram trabalho escravo nos centros urbanos. As vítimas na cidade aparecem pelos mesmos motivos: a exclusão social e econômica. Para Luís Fernando Busnardo, da DRT, há registros de casos degradantes nos grandes centros do Paraná. “Isso é uma característica principalmente no sul do Brasil”, comenta. Uma das profissões com mais ocorrências é a de empregada doméstica.

Um exemplo do que acontece nas cidades foi a descoberta, em novembro do ano passado, de uma padaria no bairro Capão Raso, em Curitiba, que funcionava irregularmente. A Vigilância Sanitária foi fiscalizar as condições de higiene do estabelecimento e acabou encontrando nove empregados em situação de escravidão. Eles trabalharam durante um mês no local. As nove pessoas dormiam no chão, sem colchões, e dentro de um dos fornos da padaria. Os trabalhadores eram de Pernambuco e contaram para a polícia, na época, que receberam proposta de emprego em Recife. “Já estava sem trabalhar há seis meses lá e, quando recebi essa proposta, aceitei na hora”, havia dito Djair Nego, 27 anos. O prometido era um salário de R$ 300 pela produção de pães, bolos e panetones. Mas o patrão descontou do salário refeições e o preço da passagem de Recife até a capital paranaense.

O dono da padaria responde inquérito por aliciamento e trabalho escravo. Na época, os nove trabalhadores tinham sido encaminhados para a Fundação de Ação Social (FAS).

Paraná não tem registro mas fornece mão-de-obra

O Paraná não aparece no último ranking do trabalho escravo divulgado pela Pastoral da Terra. Mas esse fato não deixa despreocupadas as autoridades locais. “Não existe casos registrados, mas isso não significa que aqui não haja trabalho escravo”, fala Jelson Oliveira. De acordo com ele, o Estado é um dos fornecedores de mão-de-obra para esse tipo de crime. “O Paraná é considerado um corredor de assalariamento rural. Só no Norte e Nordeste, há entre 800 e um milhão de trabalhadores rurais que sofreram com a crise do café e foram para outros estados”, comenta.

O chefe de inspeção do trabalho da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) do Paraná, Luís Fernando Busnardo, explica que a migração é outra razão que motiva o trabalho escravo. “Nós precisamos cuidar da mão-de-obra deslocada”, aponta.

Ele conta que o Paraná ainda tem muitos casos de trabalho degradante, que oferece péssimas condições durante o emprego e intensas jornadas de trabalho. Um exemplo disso foi encontrado por Oliveira. “Em Cidade Gaúcha (região Noroeste), dois mil trabalhadores de Alagoas foram encontrados esperando pela safra de laranja no interior de São Paulo”, comenta. “Essa mobilidade facilita o não cumprimento das leis. Além disso, eles também não conhecem ninguém para pedir ajuda ou orientação, pois estão longe de casa”, afirma Oliveira.

Há mais escravos hoje no mundo do que em 1700

De acordo com o professor Carlos Lima, da UFPR, a situação da escravatura atual pode ser considerada pior do que aquela abolida em 1888 com a Lei Áurea. “Em 1770, estavam na América aproximadamente dois milhões e meio de escravos. Hoje em dia, estima-se que vinte milhões de pessoas no mundo são submetidas a esses trabalhos”, compara Lima.

“Em quatro séculos, a migração atingiu dez milhões de africanos. O tráfico atual, que ultrapassa fronteiras de países, é de 900 mil pessoas por ano”, indica o professor. “Essa diferença é gritante”, cita. O número de 25 mil trabalhadores escravos no Brasil é pouco para Oliveira, da Pastoral da Terra. “Para cada caso registrado, há outros cinco ainda sem conhecimento”, afirma. “Fala-se em 40 mil pessoas escravas”.

Dados da CPT, de janeiro a novembro de 2003, indicam que houve um crescimento nas denúncias em relação aos anos anteriores. Foram 223 casos registrados, o que significa 51,7% a mais que 2002. O número de trabalhadores foi de 7.560, 35% superior no mesmo período. “De 2001 para 2002 já aconteceu um crescimento absurdo de 300%. De 1998 para cá, pelo menos temos 50% casos a mais a cada ano”, conta Oliveira. “Mas das 223 denúncias, somente 144 foram fiscalizadas e 4.725 trabalhadores libertados”, explica. Para ele, talvez esses dados não apontem um aumento do número de escravos. “O maior interesse da mídia, as denúncias mais constantes e as ações do governo estão ajudando na descoberta de novos casos”, acredita.

Números do trabalho escravo no Brasil

* Em 2002, pelo menos 5.559 pessoas estavam submetidas em regimes de escravidão.

* O Estado com o maior número de casos registrados é o Pará. Das 147 denúncias em 2002, 116 estavam no Estado. Em segundo lugar está o Maranhão (12 casos) e, em terceiro, Mato Grosso (11).

* Em 2003, aconteceram 223 denúncias, 51,7% a mais que 2002.

* Neste mesmo período, foram descobertos 7560 trabalhadores escravos, número 35% superior em relação à 2002.

* O governo federal estima que existam 25 mil trabalhadores escravos no País.

* Para a Comissão Pastoral da Terra no Paraná, este número pode chegar a 40 mil.

Fonte: Comissão Pastoral da Terra

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