Falsificação de multas corre solta em Curitiba

A apenas alguns metros do Batalhão de Trânsito da Polícia Militar (BPTran), quase defronte ao Departamento de Trânsito do Paraná (Detran-PR), no Tarumã, em Curitiba, é possível encontrar despachantes dispostos a "quebrar" os pontos da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) de proprietários de veículos que têm pontuação alta. Para isso, eles utilizam ilegalmente fotocópias da CNH e falsificam as assinaturas de motoristas que, por algum motivo, já utilizaram os serviços do estabelecimento, apresentando-os como condutores em infrações de trânsito que não cometeram.

Seguindo denúncias de vítimas do golpe, que não quiseram se identificar por medo de represálias, a reportagem de O Estado percorreu alguns estabelecimentos apontados pelos denunciantes. Em três despachantes – dois deles próximos ao Detran, no bairro Tarumã, e outro no centro de Curitiba – e em três revendas de automóveis usados – uma no Boqueirão, uma no Água Verde e outra no Tarumã, encontrou comerciantes dispostos a aplicar o golpe por valores que variam de R$ 100 até o comprometimento no fechamento do negócio, no caso das revendas.

Fazendo-se passar por um motorista com a pontuação quase estourada, o repórter de O Estado não teve muitas dificuldades em conseguir confissões de despachantes e vendedores de veículos, que mesmo a alguns passos das instituições legais de trânsito, não têm pudor em revelar o golpe. Veja a transcrição de uma dessas conversas, travada no segundo contato que o repórter fez com um desses despachantes:

Repórter Então, como disse antes, estou precisando aliviar uns pontos na carteira. Queria que você me ajudasse a recorrer de algumas delas só até vencer algumas que têm quase um ano.

Despachante – Olha, nesse caso aconselho você a "quebrar" os pontos.

Repórter "Quebrar"? Como isso funciona?

Despachante – A gente põe os seus pontos na carteira de outra pessoa.

Repórter Sim, mas isso não dá problema para mim depois?

Despachante – Não. Pode ficar sossegado.

Repórter Mas vai para a carteira de quem?

Despachante – Temos uns "xerox" aqui de um monte de carteiras. Pegamos uma delas, anexamos e apresentamos a pessoa como motorista. Não tem erro. Fazemos direto.

O que o diálogo esconde é que para funcionar, além de anexar uma cópia da CNH à revelia do motorista vítima, os estabelecimentos falsificam a sua assinatura e apresentam um endereço "frio". Assim, a vítima não fica sabendo que recebeu a pontuação, salvo atinja os 20 pontos regulamentares, quando o Detran envia uma notificação para o endereço correto, ou consulte freqüentemente seu saldo. Para fazer o trabalho, o despachante do diálogo acima cobrava R$ 100 por cada multa "quebrada".

Montanhas de fraudes

Outra mentira que o diálogo esconde é que o proprietário que está conivente com o golpe não está sujeito a sanções. Tanto no departamento de defesa prévia quanto na Junta Administrativa de Recursos de Infrações (Jari) do Departamento de Trânsito de Curitiba (Diretran), acumulam-se centenas de pastas com processos administrativos onde os funcionários do órgão perceberam falsificações grosseiras de assinaturas na apresentação de condutor ou que correm por conta de reclamações das vítimas, que, de alguma forma, descobriram a fraude.

"Esse tipo de golpe existe desde o novo Código de Trânsito, mas de uns tempos para cá a freqüência com que aparecem por aqui tem aumentado", confirma o coordenador dos Jaris, Carlos do Vale, sentado em meio a uma montanha de exemplos das fraudes. Em uma delas, onde um mesmo motorista recebeu 10 multas de outras pessoas que nem conhecia, as assinaturas estavam tão bem falsificadas que o golpe só foi descoberto porque os golpistas se descuidaram e copiaram em uma delas a assinatura do ex-diretor do Detran, César Franco.

Elaine, que preferiu não revelar o nome completo, foi uma das vítimas do golpe. A menos de um mês ela recebeu em casa a notificação de que sua CNH estava suspensa por ter atingido 20 pontos. "Quando vi a relação das multas, vi que três delas eram de um veículo que não conhecia, em lugares que nunca estive", conta. No Jari, foi aconselhada a assinar uma declaração reconhecida em cartório de que a assinatura na apresentação de motoristas daquelas três infrações eram falsas.

"Mas eu lembrava que havia deixado uma cópia da CNH em uma revenda de veículos. Para minha surpresa, ao voltar lá, fingindo ser uma compradora, um dos vendedores admitiu o golpe." A reportagem também esteve na loja se passando por comprador. Quando o repórter ameaçou não fechar o negócio por conta de muitos pontos na carteira, também conseguiu a confissão de um dos vendedores.

Quando a fraude é descoberta pelo Diretran, além dos pontos voltarem imediatamente para o proprietário do veículo, esse é "convidado" a prestar esclarecimentos no órgão. O processo então é enviado ao Detran, para que os pontos a mais sejam subtraídos da carteira da vítima, e para uma delegacia da Polícia Civil, que instaura inquérito.

Órgãos de trânsito não têm estatísticas sobre a fraude

Para o diretor do Diretran, Gilberto Foltran, apesar do aumento nos casos de falsificação nas apresentações de condutores, ainda não chegam a representar muitos problemas visto o total de multas aplicadas todos os anos. "Não temos quantificado quantas fraudes dessas recebemos, mas perto das 50 mil multas emitidas em 2005, não são tantas", afirma. Mas ele ressalta que todas as que chegam ao conhecimento do órgão são enviadas à Polícia Civil.

Por esse motivo, Foltran explica que não existe muito o que se fazer para combater a fraude. "Os técnicos que recebem os recursos no Diretran não são preparados para reconhecer assinaturas falsas, então infelizmente muitas das vítimas nem ficam sabendo que levaram os pontos", diz. Para o diretor do Detran, Marcelo Beltrão de Almeida, mesmo contando todas as multas emitidas no Estado, o total dessas fraudes passa despercebido. "Acredito que deva ser um número elevado, mas não dá para quantificar."

Mas Almeida dá uma dica para os motoristas se prevenirem e não serem vítimas da fraude. "Para comprar um veículo, por exemplo, a pessoa não precisa deixar cópia da CNH, e mesmo que deixe, pode deixar uma mensagem escrita no papel especificando para que fim o documento pode ser usado", explica. Foltran completa dizendo que o melhor a se fazer é não deixar cópia de documento algum em estabelecimentos suspeitos. "Além disso, é sempre bom conferir freqüentemente seu saldo na internet, no site do Detran."

A delegada adjunta da Delegacia de Estelionato e Roubo de Cargas de Curitiba, Vanessa Alice, que recebe as denúncias do Diretran e das vítimas dos golpes, explica que não é difícil chegar aos autores das fraudes. "Basta chegar até o proprietário do veículo multado. Dificilmente alguém aplicaria uma fraude dessas em seu nome sem que ele saiba", diz. Segundo a delegada, normalmente os proprietários admitem que conseguem as fotocópias das CNH com despachantes, advogados e vendedores de veículos. Os autores das fraudes respondem por estelionato, falsidade ideológica e formação de quadrilha, e se condenados podem pegar de 4 a 8 anos de cadeia. "É menos arriscado freqüentar alguns meses as aulas de reciclagem do que acabar respondendo na Justiça", conclui a delegada. (DD)

Associações de classe incentivam denúncias

Para o diretor jurídico do Sindicato dos Despachantes do Paraná (Sindepar), Everton Calamucci, os despachantes que fazem esse tipo de fraude são exceção no meio e devem ser denunciados pelas vítimas (veja quadro). "Já temos conhecimento de alguns deles e o nosso Conselho de Ética já está analisando os casos", afirma. Segundo Calamucci, os despachantes que fazem a fraude podem ser suspensos ou até mesmo perder a licença para trabalhar. "Vale ressaltar que a posição do Sindepar é que os despachantes não são nem mesmo habilitados a fazer recursos de multas. Para esses casos, as pessoas devem recorrer a advogados especializados", diz o diretor.

"Esse tipo de atitude mancha a classe e prejudica os negócios, já que os clientes acabam desconfiando de todos os estabelecimentos", avalia Nelson Pangrácio Júnior, diretor da Associação das Revendas Associadas do Paraná (Assovepar). O diretor também orienta que quem for lesado por uma loja de veículo deve entrar em contato com a entidade, que imporá sanções ao estabelecimento.

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