País de coitadinhos

Duas sessões solenes, uma no Senado e outra na Assembléia Nacional, marcaram, quinta-feira última, o anúncio do projeto final do novo sistema francês de previdência – com regras gerais únicas, envolvendo o setor público e o privado. Foram doze anos de lutas, debates, homéricas greves que às vezes pareciam virar o país pelo avesso, milhares de emendas e muito discurso. Mas o tempo de contribuição (40 anos agora, e 41 a partir de 2008) vale para todos, assim como foram fixados limites para os benefícios. Um plano de capitalização dá a cada francês uma conta individual que, na aposentadoria, retribuirá o cidadão com base na sua contribuição. Em termos gerais, o governo venceu as resistências corporativistas.

Nem tudo o que vem da França (ou de qualquer país da velha Europa ou do chamado primeiro mundo) é necessariamente bom. Mas esse exemplo relativo às questões previdenciárias que nos advém de sociedades como a francesa, a italiana, entre outras, deveria ser observado com um pouco mais de aproximação pelos brasileiros e brasileiras de boa vontade. Evitaria, por exemplo, que tentássemos aqui a reinvenção da roda. Ou, como quer o ministro Luiz Fernando Furlan, nos aproximaria um pouco mais do tão sonhado status primeiro-mundista, onde os cidadãos abrem mão do reconhecido egoísmo para garantia do bem-estar da maioria, sem esses bolsões absurdos de miséria absoluta que nós temos. Com efeito, o ministro acaba de ensinar que “se quisermos manter privilégios que foram conseguidos através de lobbies e de pressões justas, naquele momento, não vamos conseguir ser um país grande, de primeiro mundo”.

O ministro falou a empresários da Confederação Nacional da Indústria, mas deveria ter ocupado uma cadeia de rádio e televisão. Deveriam ouvi-lo outros setores da sociedade, exatamente aqueles que, depois de tanta “pressão justa” no correr do tempo, estão impregnados do convencimento de seus direitos inalienáveis, sem perceber que são exatamente tais direitos, já com sabor de inequivo privilégio, que impedem que outros -a maioria da sociedade – possa sonhar com algum direito. Segundo Furlan, “não somos um país de coitadinhos”. Mas, para crescer, além da baixa da taxa de juros exorbitante que praticamos e das reformas justas e necessárias que esperamos, precisamos que a sociedade se engaje, participe e, acima de tudo, abra mão de privilégios em benefício do interesse e do bem coletivos.

Não vai ser fácil, como não foi fácil na França. A natureza humana é uma só, no velho e no novo mundo, o que nos faz todos um pouco mais parecidos, além das coincidências de nosso mapa genético. Quem tem, não abre mão, mas faz o discurso dos que não têm. Pior, argumenta que a posse é necessária para que, assim livre de preocupações, possa lutar pela esperança dos descamisados. A questão da previdência, que envolve o quinhão de cada um na reta final da vida, dá bem a medida do egoísmo dissimulado pelo discurso social de muita gente com poder de discursar. Do egoísmo e da insensibilidade. Por isso o pedido de Furlan, para que a sociedade participe e, acima de tudo, abra mão dos privilégios (naturalmente aqueles que os têm), deveria ser a premissa fundamental do novo pacto social um dia referido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Do contrário, corremos o risco de reformar para consolidar diferenças, o que aumentaria ainda mais o fosso de nossas desavenças, já escavado pelos sem-terra em ritmo de invasão crescente, pelos sem-teto agora também acampados pelas cidades e pelos despossuídos todos ainda desorganizados. E para pagar a conta dos privilegiados, mais impostos, como receia o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Horácio Lafer Piva. Sua preocupação, já manifesta (“temos receio e estamos temerosos de que tudo acabe em cobrança de mais impostos”), tem fundamento no impasse que também se desenha no relacionamento entre a União e os governadores, entre governadores e prefeitos. Aqui, como na reforma previdenciária, o que está em jogo é a partilha do bolo que cabe a cada um. Ou deveria caber, não fôssemos por enquanto candidatos a formar esse país de coitadinhos que inspira o discurso de Furlan.

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