O vento gelado dos Andes

No Brasil jamais tivemos algo parecido, mas ainda é cedo para tecer juízo de valor acerca da crudelíssima dicotomia – ter ou não inveja – dos nossos irmãos bolivianos que acabam de eleger o indígena aymara Evo Morales para a Presidência da República.

Diga-se a bem da verdade que a eleição de Evo (será que seus pais esperavam uma menina a quem dariam o nome de Eva?), transcorreu na mais absoluta normalidade e, como em poucas ocasiões anteriores naquele país, as normas do convívio civilizado foram seguidas pelos diversos postulantes.

Teria sido necessário um indígena do altiplano candidatar-se à presidência para que as regras do jogo democrático seguissem o caminho natural, onde vezes sem conta representantes escalados pela elite, quando não por estamentos superiores das forças armadas, puseram de lado a Constituição atropelando os mesmos princípios que juravam – cada um a seu modo – defender?

No Brasil, é como se descendente direto de algum cacique tupiniquim, cujos ancestrais tivessem habitado desde eras longínquas a selva impenetrável, de repente fosse eleito presidente. Já chegamos perto, pois em 2002 a maioria acachapante de 53 milhões de eleitores abriu as portas do Palácio do Planalto a um retirante nordestino, ex-operário metalúrgico no ABC paulista, líder sindical e, há 25 anos, principal fundador do Partido dos Trabalhadores.

A propósito da eleição de Morales no último domingo, vale a pena refletir sobre alguns conceitos emitidos pelo escritor boliviano Edmundo Paz Soldán, em artigo publicado no importante diário madrilenho El Pais, na edição desta quarta-feira. O escritor lembrou que em 1993, já um aymara, Victor Hugo Cárdenas, que falava seis idiomas e tinha doutorado em universidade francesa, fora eleito vice-presidente na chapa de Gonzalo Sanchez de Lozada, em seu primeiro governo. A idéia de que Lozada ficasse doente e a Bolívia passasse a ser governada por um índio causava na elite calafrios mais torturantes que os ventos gelados dos Andes. Inclusive num tio do escritor.

Doze anos depois, muitos que execraram a possibilidade mudaram de idéia, entre eles o tio, a quem Soldán perguntou o que pensava da eleição de Morales. Mesmo não comungando das idéias do presidente e supondo que os Estados Unidos vão espalhar trancas por toda parte, acredita que o roubo sistemático do erário característico dos governos democráticos dos últimos vinte anos vai acabar.

Além disso, a ascensão de Morales se deveu em larga escala ao desgaste dos partidos tradicionais, manipulados por políticos corruptos e carentes de visão nacional e como resultado inevitável da derrocada econômica a que Sanchez de Lozada e outros presidentes neoliberais haviam conduzido o país.

Uma constatação óbvia feita por Soldán é que as etnias indígenas chegam a 60% da população boliviana, de sorte que algum dia isso teria de acontecer, como uma espécie de predestinação histórica, e não meramente como êxito pessoal de Evo. Todavia, ?Evo aparece no momento adequado, quando o país se encontra suficientemente maduro para assumir a idéia de um presidente indígena. Nesse caso o processo histórico, a princípio muito lento, logo acelerou bruscamente: há dez anos a possibilidade de um índio presidente era rechaçada no mundo urbano e, praticamente, inexistia no mundo rural?.

Com visível ironia, o escritor anota que setores da classe média e da elite observam o processo histórico da mesma forma que o príncipe Fabrizio e seu sobrinho Tancredi em O leopardo, a grande novela de Lampedusa ambientada na Sicília de 1680. A aristocracia estava por perder suas posições diante da iminente unificação da Itália, com o triunfo de Garibaldi à frente das classes populares.

O príncipe reconhecia o fracasso da aristocracia, mas Tancredi, admirador de Garibaldi, procurava tirar partido da nova situação sob a égide da frase lapidar: ?Algumas coisas devem mudar para que tudo permaneça igual?. Para Soldán, ambas as classes estão presentes na Bolívia de 2005. Os que não votaram em Evo, mas compreendem as razões de sua vitória, e os que o apoiaram para evitar a continuidade dos bloqueios que engessaram a economia e causaram a queda de dois presidentes nos últimos anos. O sentimento foi resumido por um empresário eleitor de Evo: ?Para acabar com os bloqueios só votando nos bloqueadores?.

A questão boliviana promete.

Ivan Schmidt é jornalista.

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