O STF e o direito de recorrer em liberdade (final)

Vê-se que não optamos pela interpretação literal do art. 595(17), o que seria desastroso, tendo em vista as garantias constitucionais acima vistas. Por outro lado, utilizamo-nos do critério da interpretação conforme a Constituição, procurando adequar o texto legal com o Texto Maior e evitando negar vigência ao dispositivo, mas, antes, admitindo-o válido a partir de uma interpretação garantidora e em consonância com a Constituição. Relembremos que “não se pode interpretar a Constituição conforme a lei ordinária (gesetzeskonformen Verfassunsinterpretation). O contrário é que se faz”(18).

Segundo Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (…) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (…)”(19).

Afinal de contas, como já escreveu Cappelletti, “a conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas”(20). Devemos interpretar as leis ordinárias em conformidade com a Carta Magna, e não o contrário!

Como magistralmente escreveu Frederico Marques, a Constituição Federal “não só submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade, como ainda subordina todo o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que é condição de legitimidade de todo o imperativo jurídico. A conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todos”(21).

Devemos atentar que o art. 595 foi inserido em nosso código processual penal pela Lei n.º 5.941/73, época em que vigiam em nosso País a Constituição anterior a 1988 (que não trazia o princípio da presunção de inocência) e um regime político não democrático.

Naquele contexto histórico, portanto, fácil era entender que uma lei ordinária viesse a dificultar o direito ao recurso e a prever a prisão automática decorrente de sentença condenatória recorrível. Bastava a sentença condenatória e a prisão impunha-se automaticamente, por força de lei, presumindo-se a culpabilidade ou a periculosidade do réu(22).

Ocorre que desde 1988 temos outra Constituição, com outros princípios, muitos dos quais expressamente previstos (o que não impede a existência de princípios constitucionais implícitos, como, v.g., o da proporcionalidade).

A lei anterior, então, tem que ser interpretada segundo este critério, ou seja, em conformidade com a nova ordem constitucional (sob pena de ser considerada não recepcionada e, logo, inválida), evidentemente sem ultrapassar o seu sentido literal, apenas conformando-a com a Constituição.

Hoje, contudo, conforme ensina Boschi, “o réu tem o direito subjetivo público de apelar em liberdade mesmo não sendo primário e de bons antecedentes -, porque a suspensividade é uma qualidade ínsita aos recursos criminais da defesa”(23).

Como dissemos, no tempo em que foi inserida em nosso sistema jurídico, a lei traduzia, em verdade, o momento histórico em que vivia o País, cabendo, por isso mesmo, atentarmos, agora, para o elemento histórico-teleológico (concepção subjetivista da interpretação, ou teoria da vontade), segundo o qual a lei obedece ao tempo em que foi intencionalmente (finalisticamente) concebida, devendo ser interpretada preferencialmente em conformidade com aquela realidade.

James Goldshimidt(24) já afirmava no clássico “Problemas Jurídicos e Políticos del Proceso Penal” que a estrutura do processo penal de um país indica a força de seus elementos autoritários e liberais(25).

Devemos, então, buscar abrigo neste elemento histórico, acomodando a lei às “novas circunstâncias não previstas pelo legislador”, especialmente aos “princípios elevados a nível constitucional”(26).

Só poderíamos interpretar este artigo literalmente se este modo interpretativo fosse possível à luz da Constituição. Por outro lado, não entendemos ser o caso de, simplesmente, reconhecer inválida a norma insculpida naquele artigo de lei.

A nós nos parece ser possível interpretá-la em conformidade com o texto constitucional, sem que se o declare inválido e sem “ultrapassar os limites que resultam do sentido literal e do contexto significativo da lei”(27).

Se verdade é que “por detrás da lei está uma determinada intenção reguladora, estão valorações, aspirações e reflexões substantivas, que nela acharam expressão mais ou menos clara”, também é certo que “uma lei, logo que seja aplicada, irradia uma acção que lhe é peculiar, que transcende aquilo que o legislador tinha intentado. A lei intervém em relações da vida diversas e em mutação, cujo conjunto o legislador não podia ter abrangido e dá resposta a questões que o legislador ainda não tinha colocado a si próprio. Adquire, com o decurso do tempo, cada vez mais como que uma vida própria e afasta-se, deste modo, das idéias dos seus autores.” (grifo nosso): teoria objetivista ou teoria da interpretação imanente à lei(28).

A interpretação literal efetivamente deve ser o início do trabalho, mas não o completa satisfatoriamente(29). Como nos ensina o Professor Miguel Reale, “a norma é sempre momento de uma realidade histórico-cultural, e não simples proposição afirmando ou negando algo de algo. (…) Se a regra jurídica não pode ser entendida sem conexão necessária com as circunstâncias de fato e as exigências axiológicas, é essa complexa condicionalidade que nos explica por que uma mesma norma de direito, sem que tenha sofrido qualquer alteração, nem mesmo uma vírgula, adquire significados diversos com o volver dos anos, por obra da doutrina e da jurisprudência.

É que seu sentido autêntico é dado pela estimativa dos fatos, nas circunstâncias em que o intérprete se encontra. (…) Dizemos, assim, que uma regra ou uma norma, no seu sentido autêntico, é a sua interpretação nas circunstâncias históricas e sociais em que se encontra no momento o intérprete. Isto não quer dizer que sejamos partidários do Direito Livre. (…) Assim, o Juiz “não pode deixar de valorar o conteúdo das regras segundo tábua de estimativas em vigor no seu tempo. (…) E, concluindo, arremata o nosso filósofo: “o reajustamento permanente das leis aos fatos e às exigências da justiça é um dever dos que legislam, mas não é dever menor por parte daqueles que têm a missão de interpretar as leis para mantê-las em vida autêntica”(30).

Carlos Maximiliano, a propósito, ensinava:

“(…) Em se tratando de normas formuladas por gerações anteriores, o juiz, embora dominado pelo intuito sincero de lhes descobrir o sentido exato, cria, malgrado seu, uma exegese nova, um alcance mais amplo, consentâneo com a época. (…) Ante a imobilidade dos textos o progresso jurídico se realiza graças à interpretação evolutiva, inspirada pelo progredir da sociedade”(31).

Vê-se que “las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas”. (grifo nosso)(32)

Atenta-se, com Maximiliano, que o “Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio”(33).

Portanto, encontra-se inteiramente superada o Enunciado 267 da súmula do Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 267, segundo a qual “a interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão”.

O mesmo se diga quanto ao art. 27, § 2.º da Lei n.º 8.038/90, dando efeito apenas devolutivo aos recursos especial e extraordinário. Neste sentido, atentemos para a lição de Ada Pellegrini Grinover, segundo a qual esta norma “visa a regulamentar os recursos de forma genérica, não sendo aplicável, quanto aos efeitos prisionais, à esfera penal”(34).

Neste mesmo sentido, Paganella Boschi, para quem este parágrafo “endereça-se unicamente aos processos cíveis, porque nestes a execução provisória da sentença, mediante caução pelo autor, é perfeitamente admissível. Jamais as sentenças proferidas nos processos criminais, por implicar ofensa aberta, direta e frontal à garantia da presunção de inocência, antes citada”(35).

Aliás, não é mesmo possível admitir-se o efeito somente devolutivo do recurso especial (e mesmo do extraordinário) na esfera penal, pois estaríamos contrariando o princípio constitucional da presunção de inocência.

Para finalizar, recorremos, mais uma vez, a Larenz: “Mediante a interpretação ‘faz-se falar’ o sentido disposto no texto, quer dizer, ele é enunciado com outras palavras, expressado de modo mais claro e preciso, e tornado comunicável.

A esse propósito, o que caracteriza o processo de interpretação é que o intérprete só quer fazer falar o texto, sem acrescentar ou omitir o que quer que seja. Evidentemente que nós sabemos que o intérprete nunca se comporta aí de modo puramente passivo”(36).

Notas:

(17) “A interpretação jurídica, insista-se, não pode ser meramente literal. No dizer do jurista italiano Dellogu, a letra da lei é ponto de partida, não é ponto de chegada!” (Luiz Vicente Cernicchiaro, Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 290).
(18) STJ, Rel. Min. ADEMAR MACIEL, DJU 3.4.95, p.8.149.
(19) O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, n.º 175, junho/2007, p. 11.
(20) Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Campinas: Bookseller, 1998, Vol. I, p. 79.
(21) Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 79.
(22) Ocorre que “nenhuma presunção emanada do legislador infraconstitucional pode prevalecer sobre a presunção constitucional”, como diz Luiz Flávio Gomes, ob. cit., p. 26.
(23) Ob. cit.
(24) Para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “nunca foi tão importante estudar os Goldschmidt, mormente agora onde não se quer aceitar viver de aparências e imbrogli retóricos.” (O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, n.º 175, junho/2007, p. 12).
(25) Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 37.
(26) “Estes são, sobretudo, os princípios e decisões valorativas que encontram expressão na parte dos direitos fundamentais da Constituição, quer dizer, a prevalência da “dignidade da pessoa humana’ (…), a tutela geral do espaço de liberdade pessoal, com as suas concretizações (…) da Lei Fundamental.” (Larenz, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3.ª ed., 1997, p. 479).
(27) Idem, p. 481
(28) idem, ibidem, p. 446.
(29) “Toda a interpretação de um texto há-de iniciar-se com o sentido literal” (idem, p. 450).
(30) Filosofia do Direito, São Paulo: Saraiva, 7.ª ed., 1975, pp. 508 e ss. (apud Luiz Flávio Gomes, Estudos de Direito Penal e Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 217).
(31) Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Forense, 1961, 9ª. ed., pp. 122 e ss. (apud Luiz Flávio Gomes, Estudos de Direito Penal e Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 218).
(32) Fiore, Pascuale, De la Irretroactividad e Interpretación de las Leyes, Madri: Reus, 1927, p. 579 (tradução do italiano para o espanhol de Enrique Aguilera de Paz).
(33) Idem, p. 165.
(34) Apud Roberto Delmanto Junior, in As modalidades de prisão provisória e o seu prazo de duração, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 206.
(35) Revista de Estudos Criminais n.º 5, Porto Alegre: Editora NotaDez, 2002.
(36) Ob. cit., p. 441.

Rômulo de Andrade Moreira é promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do Ministério Público do Estado da Bahia. Ex-assessor especial do procurador-geral de Justiça e ex-procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-Unifacs na graduação e na pós-graduação. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Unifacs (Curso coordenado pelo Professor Calmon de Passos). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da Unifacs. Membro da Association Internationale de Droit Penal, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais – ABPCP. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Autor das obras “Direito Processual Penal”, Salvador: JusPodivm, 2007; “Juizados Especiais Criminais”, Salvador: JusPodivm, 2007 e “Estudos de Direito Processual Penal”, São Paulo: BH Editora, 2006. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia, da Faculdade Jorge Amado e do Curso JusPodivm.

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