O oráculo da devassa e o ovo da serpente

O advogado René Ariel Dotti apresentou, em Natal/RN, a sua contribuição à XX Conferência Nacional dos Advogados, que se realizou naquela cidade, ao ler o manifesto em defesa das liberdades de convicção e julgamento, já publicado neste Caderno. Diversos exemplares do manifesto foram distribuídos aos participantes, com o texto da carta que segue em anexo. Durante sua exposição na tarde de 12 de novembro, o advogado René Dotti sustentou que “o uso indiscriminado por agentes do poder público de escutas telefônicas ilegais não é mais um problema de indiciados, suspeitos ou réus e seus advogados, afetando a sociedade inteira que vive a epidemia do medo sem poder exercer dois elementares direitos garantidos pela Constituição, que são o direito à intimidade e o direito da vida privada”. Por outro lado, demonstrou que o problema se multiplica ao infinito com as interceptações criminosas de comunicação feitas por empresas privadas ou pessoas individualmente contratadas para praticar esse crime. O acesso indevido constitui, segundo o advogado Dotti, o oráculo da devassa. A alusão ao ovo da serpente, procura lembrar o crescimento do regime de terror da Alemanha nazista, quando Hitler sensibilizava multidões para perseguir judeus, que seriam os responsáveis pela desordem econômica e financeira da Alemanha. O aplauso da população àquele discurso tem semelhanças com o discurso político do crime que atualmente se promove intensamente no Brasil pregando, inclusive, justiçamentos sumários e absolutamente injustos.

Prezado Colega Advogado

A interceptação criminosa das comunicações telefônicas deixou de ser um problema localizado de interesse de suspeitos, indiciados ou réus e seus defensores. Ela atinge a liberdade profissional do Advogado e causa a insegurança de toda a sociedade, porque o Estado não promove a defesa da privacidade, bem espiritual de milhões de cidadãos brasileiros. Ao contrário, seus agentes são os qualificados e impunes executores dessa malsinada e abusiva intromissão.
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No dia 9 de setembro deste ano, o Conselho Nacional de Justiça aprovou a Resolução n.º 59, que estabelece procedimentos de rotina para as diligências de interceptação de comunicações telefônicas, de sistemas de informática e de telemática, nos órgãos jurisdicionais do Poder Judiciário.

Na mesma data, a 6.ª Turma do STJ concedeu o habeas corpus n.º 76.686 (PR), para declarar a nulidade parcial de ação penal em face da ilegalidade e do abuso de poder na colheita da prova resultante de interceptações telefônicas. Foi relator o emérito Ministro nilson naves.

Ambas decisões devem ser comemoradas por todos os advogados brasileiros, porque: a) Resgatam a credibilidade do princípio da inadmissibilidade, no processo, das provas obtidas por meio ilícito; b) Reafirmam a garantia constitucional da inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas, salvo hipótese expressa e restrita; c) Renovam a esperança de que as escutas ilegais possam ser punidas na forma do art. 10, da Lei n.º 9.296, de 24/7/1996; d) Consagram a dignidade da pessoa humana, declarada no art. 1.º da Constituição como um dos fundamentos da República; e) Demonstram para a população em geral que os atentados sem justa causa aos direitos da personalidade são reprovados, libertando os cidadãos brasileiros da condição de reféns do medo, sejam eles objeto ou não de investigação criminal.

Embora não tenha sido impetrante daquele writ, porém considerando os deveres éticos e legais da Advocacia, redigi um manifesto sobre o incidente, cujo texto foi lido na sessão do dia 23 de setembro da mesma Turma. E assim ocorreu diante da oportunidade em que, como impetrante do habeas corpus n.º 109.205 (PR), tive acesso à tribuna para sustentar o pedido. O documento foi integralmente transcrito na ata dos respectivos trabalhos.

Como ali foi dito, “não se trata de um desagravo, mesmo porque a Corte não pediu e nem dele precisa. Também não é mero ato de cortesia interesseira junto ao Poder Judiciário. Trata-se da reação de um profissional do Direito e da Justiça, com dez lustros de atividade modelada pela experiência dos debates forenses”.

A ilegítima, insensata e temerária conduta de servidores públicos que têm a obrigação institucional de proteger os direitos e as garantias individuais mas que fazem, abusivamente, da escuta telefônica, o Oráculo da devassa, ofende a letra e o espírito da Constituição e aparece como ovo da serpente que está sendo chocado em nichos do autoritarismo estatal e da prepotência funcional. Sob outro aspecto, esse tipo de opressão restaura a violência moral do Ato Institucional n.º 5 (13/12/1968 13/10/1978), que suspendeu a garantia do habeas corpus. Não havendo possibilidade de impedir o exercício do direito de petição como fizeram os prebostes e adesistas do regime militar – os fundamentalistas do arbítrio procuram intimidar magistrados pelo mesmo e criminoso procedimento das interceptações telefônicas criminosas, como foi publicamente denunciado pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, o intimorato e lúcido Ministro gilmar mendes, na sessão de 6 do corrente mês, no julgamento do HC n.º 95.009-4 (SP), relator o Senhor Ministro eros grau, o qual proferiu antológico voto em defesa do devido processo legal e outros princípios constitucionais e legais.
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Em 1978, na histórica Conferência da OAB, lutamos pelo Estado de Direito e um dos temas era a restauração dos predicamentos da magistratura, que foram mutilados durante o regime militar (1964-1985). Agora, consagradas as garantias institucionais na Carta de 1988, devemos lutar para que os Juízes possam exercer o direito de não ter medo quando tiverem de pronunciar a ilegalidade e o abuso de poder nos feitos que conhecerem, sejam criminais ou de outra natureza e independentemente de quem seja o litigante, em pleitos de interesse público ou privado. Somente assim estarão eles cumprindo os imperativos de sua consciência, os deveres legais de seu cargo e o compromisso do juramento.

Acredito que, no generoso cenário natural e humano desta bela cidade de Natal e na atmosfera de esperança que reúne milhares de advogados na XX Conferência da Ordem dos Advogados do Brasil, é fundamental que manifestemos um voto de apoio e de confiança àqueles magistrados de nosso país que, sem preconceito, temor ou indiferença, efetivam os direitos e as garantias constitucionais e legais do Estado Democrático de Direito.

Aproveito a oportunidade para lhe transmitir as expressões de consideração e apreço.

René Ariel Dotti é advogado desde 1958. Detentor da Medalha Vieira Neto (OAB-PR). Detentor da Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados (2007), por proposição do Deputado Osmar Serraglio. Texto de carta distribuída após participação no painel “Direitos Fundamentais e Estado Policial” com a palestra “Estado de Polícia e Legislação Penal de Terror: a dificuldade de efetivar a CF/88”, da XX Conferência Nacional dos Advogados que se realizou em Natal (RN) de 11 a 15 de novembro.