O nome próprio da paz

Longe do Brasil, onde o debate em torno dos alimentos geneticamente modificados – os transgênicos – pega fogo bem na hora do plantio da soja gaúcha, o presidente Lula gasta charme e latim para repetir, com outras palavras, o que o último presidente militar brasileiro disse no mesmo lugar. Há 21 anos, dizíamos na Assembléia Geral da mesma Organização das Nações Unidas – ONU, pela boca do então general João Figueiredo, não haver futuro no equilíbrio do terror, ser imprescindível acabar com o protecionismo dos países ricos, ser questão de honra acabar com a vergonha da parte da humanidade que padece fome e, por outra coincidência histórica, estávamos todos desencantados com a frustração da tentativa de diálogo Norte-Sul que acabara de acontecer em Cancún, no México.

Lula foi a Nova York depois de outra frustração na mexicana Cancún e, estreando na Assembléia Geral da ONU, falou em bom português, à sua moda, o que já dissemos alhures também pela boca do antecessor Fernando Henrique Cardoso. O ponto alto de seu discurso foi a proposta de criação de um comitê mundial contra a fome – mais um de tantos organismos dirigidos ao combate da fome e da pobreza já existentes ao redor do mundo. Lula condenou a omissão dos países afirmando que de nada servem os fundos instituídos, como o Fundo de Solidariedade contra a Fome, se os cofres continuam vazios por falta de vontade da parte rica das nações. O maior desafio da humanidade é humanizar-se, ensinou, para pregar que “é hora de chamar a paz pelo seu nome próprio: justiça social”.

Embora repetindo temas, Lula conseguiu dar roupagem nova ao velho discurso. Às vezes com palavras dramáticas: “Não temos mais o direito de dizer que não estávamos em casa quando bateram à nossa porta e pediram solidariedade”, assim como “não temos o direito de dizer aos famintos que já esperaram tanto: passem no próximo século”.

Ele condenou o emprego de recursos violentos, mesmo no necessário combate ao terrorismo internacional, assinalando que o verdadeiro caminho da paz é o combate sem tréguas à fome e à miséria, “numa formidável campanha de solidariedade capaz de unir o planeta em vez de aprofundar as divisões e o ódio que conflagram os povos e semeiam o terror”. Em outro trecho disse que a única guerra da qual poderemos sair todos vencedores é a guerra contra a fome e a miséria que hoje atinge um quarto da população mundial, incluindo aí 300 milhões de crianças. “Nada é tão absurdo e inaceitável quanto a persistência da fome em pleno século 21, a idade de ouro da ciência e da tecnologia”, disse.

O discurso de Lula, pelo menos na parte que toca nos miseráveis do planeta, foi elogiado nos quatro continentes com poucas ressalvas. O que já não ocorre com a pretensão brasileira de integrar o Conselho de Segurança da ONU na condição de membro permanente. Entrar no conselho, advertem algumas vozes, tem altos custos, incluindo o de enviar tropas para qualquer lugar do mundo e assumir compromissos financeiros e políticos. Ao tomar posições incômodas, o Brasil perderia a neutralidade que hoje lhe permite mediar conflitos.

Seria mais ou menos o que está acontecendo atualmente em nível interno: comprometido com certas causas mais ideológicas que científicas – como essa do combate aos transgênicos – o governo de Lula não sabe se assobia ou chupa cana. Teve um ano para decidir, e agora se vê encurralado pelos agricultores que já começam a lançar as sementes ao solo. E sementes no solo significam reforçar essa guerra sem quartel contra a fome que, roncando o estômago, é incapaz de distinguir mudanças genéticas de aparência e sem comprovação científica de que possam fazer mal aos famintos.

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