O Governo e os Juízes-Funcionários

Como sabemos, muito se tem falado da eficiência do sistema de justiça nacional. Como se deveria saber, o essencial desse sistema assenta nas regras feitas pelo poder político (Parlamento e Governo) desde 1976. Entendeu recentemente a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (v. comunicado de 19/11/2004, em www.asjp.pt) o seguinte:

– "É do conhecimento público que o actual ministro da Justiça pretende negociar e celebrar com os partidos políticos, até janeiro de 2005, um "Pacto de Regime" para a justiça, propósito (…) não referido na apresentação do programa deste Governo de continuidade na AR";

– "para além do conhecido episódio da nomeação da nova Direcção do CEJ, numa intervenção na AR por ocasião da apresentação das alterações aos CP e CPP o sr. Ministro da Justiça fez então as primeiras referências genéricas ao "Conselho Superior Único" – como se sabe, o «Conselho» é um velho sonho de alguns agentes do MP;

– "na jurisdição administrativa e fiscal os processos on-line bloqueiam, não obstante o modelo ter sido pensado para assentar nesse pressuposto e os custos de implementação terem sido e continuarem a ser elevadíssimos;

– "investem-se milhões num Instituto de Acesso ao Direito que não se sabe bem como vai funcionar, enquanto continua a ser cada vez mais evidente que o modelo de apoio judiciário, mesmo com as mais recentes alterações, apresenta uma relação qualidade/custo manifestamente desproporcionada, com a agravante de que em muitos casos exclui os que dele carecem e beneficia quem não precisa";

– "no programa eleitoral apresentado pelo PSD para a presente legislatura referem-se medidas que visavam obviar àqueles problemas, mas que agora parecem esquecidas.

Entre elas, referia-se ser propósito: fixar um tempo mínimo de exercício da advocacia como condição do patrocínio forense junto dos Supremos Tribunais; instituir a figura do defensor público, como alternativa às defesas oficiosas, para tornar efectiva a igualdade no acesso à Justiça; modificar o sistema de formação e estágio, reduzindo ou pondo termo ao período de formação conjunta das magistraturas judicial e do MP e ampliando o tempo de estágio".

O Programa do actual Governo diz que reforçar-se-á a capacidade do sistema judicial através da adopção e/ou execução das seguintes medidas positivas: instalação de assessorias técnicas e dos secretariados de apoio aos juízes; criação de mecanismos que libertem os juízes da prática de actos meramente burocráticos; desenvolvimento e ultimação da informatização dos tribunais e a sua ligação em rede entre si e aos restantes sistemas do sector da Justiça.

Aqui chegados, em jeito de colaboração com tão nobre tarefa, cabe perguntar se a reforma da justiça se pode fazer com a "funcionarização" dos julgadores? Além da lógica, a economia e as finanças já mostraram que não.

Promove o sentido de Estado e o respeito pelos Tribunais um sistema que permite que a formação profissional de todos os juízes (da 1.ª e da 2.ª instâncias e dos Supremos!) seja dirigida por um docente universitário? Se se tentasse o inverso nas faculdades ou na Ordem dos Advogados, a resposta seria a óbvia: não.

É que a velha "funcionarização" dos juízes é muita dispendiosa e democraticamente suicida (à semelhança da judicialização do MP das décadas de 1980 e 1990).

"Funcionarizar" os juízes é (1) mantê-los como dactilógrafos nos seus minúsculos gabinetes de trabalho, (2) impedir a sua formação profissional como julgadores, (3) confundir ou misturar a função do juiz com outras funções, (4) instituir um órgão de gestão e disciplina dos juízes constituído e dominado por advogados ou agentes do MP, e (5) conceder a não juízes a direcção da formação judiciária dos juízes dos Supremos e das instâncias.

Aquela "funcionarização" fez sentido político na ditadura da II República e no calor do pós- 25/Abril. E talvez faça ainda sentido num sistema em que o juiz seja obrigado a ver-se como um mero "operador judiciário" ou como espelho dum suposto "paradigma novo" de "magistrado velho"! Mas não é minimamente razoável ou inteligente numa sociedade que queira ter tribunais respeitados e um sistema racional e financeiramente eficiente!

Quer dizer, se os Governos não querem dar um tiro (político e financeiro) no pé, deverão ter presente que os juízes não devem ser considerados ou tratados como "operadores judiciários" ou como funcionários; os juízes são e devem ser considerados efectivamente como titulares da função jurisdicional, função que é soberana, exclusiva e democrática; e que, obviamente, não se restringe ao acto (intelectual) de julgar. É uma função que pressupõe meios materiais suficientes e adequado respeito institucional.

Paulo H. Pereira Gouveia é juiz de círculo em Funchal (Ilha da Madeira). Publicado no Diário de Notícias, Lisboa – Portugal, de 24.11.04.

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