O fim da sucessão tributária e trabalhista no projeto da nova Lei de Falência

Otto Von Bismark, o Chanceler de Ferro do Reich alemão, com relação às leis e às salsichas, dizia que é melhor não saber como foram feitas. Tramita no Congresso Nacional desde 1993 o Projeto da nova Lei de Falência. Nas voltas e reviravoltas do processo legislativo, já foram apresentadas 484 emendas e 5 substitutivos, que modificaram a estrutura central do Projeto. A matéria foi aprovada pela Câmara dos Deputados em outubro de 2003 e tramita no Senado, sendo relator o senador Rames Tebet.

Dentre as modificações propostas pelo Senador, consta o fim da sucessão trabalhista e tributária no caso de aquisição da empresa falida por terceiro.

Ainda que se diga que “o novo regime falimentar não pode jamais se transformar em bunker das instituições financeiras” e que “pelo contrário, o novo regime falimentar deve ser capaz de permitir a eficiência econômica em ambiente de respeito ao direito dos mais fracos” (Parecer do Relator, disponível na Internet: http://www.senado.gov.br/web/senador/ramez/ramez.htm#, a verdade é que há um retrocesso na questão social, em vista do proposto fim da sucessão, permitindo fraudes.

Um dos princípios orientadores aventados pelo relatório é o da proteção aos trabalhadores, ressalvando todavia “instrumentos que, por preservarem a empresa, preservem também seus empregos e criem novas oportunidades para a grande massa de desempregados”.

Ou seja, o velho estribilho: reduzir direitos para evitar o desemprego. Afinal, como disse Bill Clinton, qualquer emprego é melhor que nenhum emprego…

Neste sentido, a proposta senatorial materializa-se com o fim da sucessão trabalhista e tributária (rectius: sucessão de qualquer natureza), no caso de falência da empresa:

Art. 141. Na alienação conjunta ou separada de ativos, inclusive da empresa ou de suas filiais, promovida sob qualquer das modalidades de que trata este artigo: … II – o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho. (grifamos)

Não há dúvida que a alienação da empresa em bloco facilita a sua venda e a continuidade da atividade. Os interessados na compra levam em consideração todos os aspectos econômicos do negócio e a poucos interessa “herdar” dívidas incertas do proprietário anterior.

Por outro lado, este processo de “esterilização” ou “pasteurização” pelo qual passa a empresa é uma porta escancarada para a fraude.

Atenção para a discriminação: a empresa solvente não dispõe desta vantagem. O comprador ao adquirir uma empresa com saúde econômica leva todo o passivo oculto, tanto tributário e trabalhista, quanto de qualquer outra natureza. É o risco inerente a qualquer atividade empresarial, estimulado pela possibilidade de lucro.

Da maneira proposta, é melhor provocar a falência da empresa, para, vendê-la apenas depois da “vacina” proporcionada legalmente. Basta o conluio entre o vendedor e o comprador e um pouco de complacência ou de estrabismo no processo falimentar para a burla ser bem sucedida. Neste verdadeiro maremoto de processos que afoga o Judiciário brasileiro, muitas vezes não há como fiscalizar com o microscópio todas as falências.

O eterno argumento de que eventualmente alguns empregos podem sobreviver é falacioso. Se a empresa está de fato insolvente, é da essência do instituto da falência eliminá-la do mercado. A falência fundamentalmente protege o mercado como um todo (do qual participam também os trabalhadores e o fisco).

A alegação da manutenção da empresa para garantir novos empregos e mais impostos não vale se não há a possibilidade de pagar os débitos trabalhistas e tributários antigos.

Na verdade é tudo uma questão de saber se o patrimônio da empresa falida é apto a prosseguir em atividade. Em caso positivo, é do interesse dos credores, segundo sua conveniência, manter a empresa em atividade. É só uma questão de organizar os meios jurídicos já existentes, sofrenando a sanha dos mais afoitos. Em caso negativo, a empresa deve mesmo ser extinta, já que é inviável.

Os céticos diriam que isto já não funciona e a falência se transforma em carniça para os abutres de plantão. Mas se já assim com o mecanismo protetor da sucessão, que dirá sem ele.

O Projeto permanece no Parlamento para o debate público. É imperioso que a sociedade e, em especial, a comunidade jurídica se integrem ao debate e atentem para as modificações propostas e para as suas conseqüências. O fim da sucessão trabalhista e tributária com o uso de clichês liberalizantes transforma mais uma vez a questão social em um caso de polícia e contribui para fazer do Brasil inteiro uma favela da Rocinha.

Célio Horst Waldraff

é mestre e doutor em Direito pela UFPR. Juiz do Tribunal do Trabalho do Paraná. Professor. Autor do livro “O Tratamento Jurídico do Empregador Insolvente e a (Nova) Lei de Falência” (Ed. Gênesis)

Voltar ao topo