O direito à moradia através da locação

No último ano, o mercado imobiliário de Curitiba noticiou fartamente sobre a escassez de imóveis para locação, sobretudo imóveis dentro da faixa de valores que viabilizem a locação para as classes de menor poder aquisitivo.

Especialistas tentavam apontar as dificuldades para tanto e concluíram que, além da escassez de imóveis construídos no mercado para atender o nicho carente, ainda existe a dificuldade dos proprietários para reaverem o imóvel por ocasião do término do contrato, em virtude do inquilino não ter outra opção de locação, deste não aceitar os aumentos contratuais ou ditados pelo mercado imobiliário no mês de reajuste e os proprietários investidores simplesmente não estarem mais dispostos a negociar, pois se deixarem o imóvel livre, fatalmente, nesta demanda de pouca oferta e muita procura, conseguirão uma nova locação com valores locatícios majorados, marginalizando a classe de menor poder econômico.

Indubitavelmente, esta questão é um paradoxo. Mas, para ser refletida, é necessário que se evolua o entendimento do problema não pautado única e exclusivamente em fatores econômicos e tão-somente na Lei infraconstitucional de número 8.245, de 18 de outubro de 1991, a chamada Lei do Inquilinato. A Carta Magna e seus comandos principiológicos são primordiais para a reflexão que se apresenta.

Volta-se, assim, ao passado, para lembrar a evolução da propriedade, que no mundo antigo era comunitária e, mais tarde, contudo, o direito de propriedade passou a ser absoluto, personalíssimo, individualista desde o direito romano (754 a.c a 565 d.c) até o Código Napoleônico (1804), sendo-lhe característica a proteção ao possuidor, ao indivíduo que podia exercer livremente seu domínio ao imóvel, utilizando-o da forma que melhor lhe aprouvesse, vindo o direito civil brasileiro, historicamente, a ratificar esta posição de soberania da propriedade, também ratificada pelas cartas constitucionais brasileiras de várias décadas, que excepcionavam, tão-somente, o direito de propriedade quando houvesse necessidade do imóvel ser desapropriado pelo poder público por exigência do bem comum.

A Constituição redemocratizadora de 1946, por sua vez, protegeu a propriedade privada focando sua funcionalidade no bem-estar social, sendo mantida a função social como princípio da ordem econômica e social, também, na Constituição de 1967.

A Constituição Federal de 1988, portanto, evoluindo com o Estado Social, que superara o liberalismo capitalista, em várias passagens faz alusão ao direito de propriedade e ao direito à propriedade, sendo o direito de propriedade um direito individual, ou seja, uma garantia fundamental (artigo 5.º, inciso XXII) e o direito à propriedade, quando o imóvel cumpre verdadeiramente sua função social, uma norma superior da ordem econômica e social.

Assim, o artigo 170 da Constituição Federal de 1988, apresentou a propriedade privada e a sua função social como princípios. A partir de então, sacramentou-se a necessidade de interpretar o direito civil de acordo com os princípios da Carta Magna e a limitar o direito de propriedade de acordo com os ditames constitucionais.

Portanto, o direito de propriedade continua fundamentado como ordem precípua do ordenamento jurídico pátrio, todavia, mitigado quando não direcionado à função social da propriedade, justamente para viabilizar o direito à propriedade através da moradia, da proteção da natureza e da produção, ou seja, o direito aos fatores essenciais ao respeito do princípio fundamental da dignidade humana.

Portanto, juridicamente, diante dos dois princípios absolutos que se defrontam, ou seja, o direito de propriedade e o direito à propriedade, é necessário que seja o principio mor da dignidade da pessoa humana, utilizado como plano de fundo para chegar-se num denominador comum.

Longe de uma solução rápida e milagrosa, é preciso, definitivamente, respeitar os comandos principiológicos do ordenamento jurídico pátrio, para que se restabeleça o rumo social necessário para uma vida digna a todos, ou seja, investidores recebendo seus alugueres e locatários tendo o efetivo e constitucional direito à moradia digna, de acordo com seus padrões sócio-econômicos.

Esta mudança de paradigma deve ser interiorizada aos poucos e requer que toda uma sociedade e seus governantes assimilem que o direito e a sociedade, propriamente dita, evoluíram e que a função social da propriedade não é letra morta de Lei, mas deve ser efetiva, concreta.

Somente a partir do momento que os investidores entendam que seu espaço imobiliário tem uma função bem maior para a sociedade do que lhe viabilizar uma renda, através da locação, é que daremos o primeiro passo.

Assim, diante de um sistema de freios e contrapesos, em que as partes se equilibrem em seus direitos e deveres, sem intuito egoístico de exploração financeira em nome da bandeira da propriedade absoluta, é que as notícias sobre escassez de imóveis destinados à locação para a classe de menor poder aquisitivo deixarão de ser manchete nos jornais e a dignidade da pessoa humana triunfará de acordo com os ditames aos quais deve estar verdadeiramente inserida.

Coluna sob responsabilidade dos membros do grupo de pesquisa do Mestrado em Direito do Unicuritiba: Liberdade de Iniciativa, Dignidade da Pessoa Humana e Proteção ao Meio Ambiente Empresarial: inclusão, sustentabilidade, função social e efetividade, liderado pelo advogado e professor doutor Carlyle Popp e secretariado pela advogada e professora M.Sc. Ana Cecília Parodi. grupodepesquisa.mestrado@ymail.com.

Daniele Kretski Bordignon é advogada especialista em direito do trabalho e previdenciário, mestranda em direito empresarial do Unicuritiba, analista de contratos de locação.

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