O ciclone da reforma processual

O ciclone irrompe e assusta pelas direções que toma, porque destrói implacavelmente.

O mesmo se dá com as leis da reforma processual, que, a pretexto da celeridade, fulminam direitos do cidadão, supondo resolver a litigiosidade entranhada na sociedade, como fez o utópico Sarney, quando, por meio de um decreto, pretendeu eliminar a espiral inflacionária. Esquece-se da natureza das coisas…

E o pior: não se buscam formas democráticas processuais; ao contrário, abusa-se do totalitarismo processual. Suprime-se o processo dialético com a participação do advogado, para centralizá-lo unicamente no poder do juiz. Não que o juiz queira ser autoritário ou totalitário; a Reforma é que assim o quer.

De fato, nos termos do art. 2.º da Lei 11.276/2006, que acrescentou o § 1.º ao artigo 518 do Código de Processo Civil, o juiz a quo deverá rechaçar o recurso de apelação que contrarie Súmula Vinculante, a qual deveria, em escorreito português, ser denominada Súmula Vinculativa.

Da mesma forma que se forceja em relação à língua pátria, também se faz no aspecto jurídico. Quais as razões? A Súmula ?vinculante? é a ditadura do Poder Judiciário, porque elimina o direito impostergável dos juízes das instâncias inferiores de raciocinarem e de formarem seu livre convencimento.

O STF e o STJ usurpam a competência do Congresso na elaboração das leis, porque farão outras, ainda que as denominem Súmula ?vinculante?. Contudo, as palavras não mudam a natureza das coisas: verba non mutant substanciam rei. Eles farão a lei, batizando-a de Súmula Vinculante, e julgarão afrontando a teoria da independência dos poderes.

Criou-se, assim, outra via que positiva o direito, mascarando o poder constituinte derivado, que é exercido pelo Congresso. Os tribunais superiores dirão, não aquilo que a lei disse, mas aquilo que querem que a lei diga. É uma forma bastarda de legislar num Estado de Direito, porque aniquila a fonte primária – a lei – e seus procedimentos legais.

Por outro lado, as Súmulas se revestirão do dom da infalibilidade, quando, hoje, muitas delas merecem ser revistas.

Uma observação político-social se destaca: se há vinte anos existissem as Súmulas ?vinculantes?, não teria havido a evolução dos direitos, em suas mais variadas áreas. Em termos de futuro haverá o engessamento normativo.

Para justificar a sua criação, foi apresentado um elevado número de processos que estariam barrando a celeridade processual. Entretanto, há que se ter em mente que o culpado pela morosidade dos processos é o próprio Estado. Foi ele que deu a sua causa, como enfatizou o presidente do Superior Tribunal de Justiça (já em 2002): ?os três níveis de administração (federal, estadual e municipal) estão envolvidos em 85% das causas judiciais? (Gazeta Mercantil, 2.1.02, p. A-7).

Não é diferente na área trabalhista: de acordo com levantamento realizado em 2003 pelo vice-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ?o setor público responde pelo primeiro, segundo, sexto, sétimo e nono postos da lista…?.

Paradoxo democrático (ou totalitarismo sub-reptício!): o Estado dá causa à morosidade processual e o cidadão tem os seus direitos fundamentais (de ação, de duplo grau de jurisdição, etc.) fulminados!

Posterga-se, em nome do praxismo, o espírito filosófico: quando deveriam combater as causas, combatem os efeitos. Mas as causas não são combatidas, porque é o próprio Estado quem as cria. É o principal procrastinador de processos, e em sua atuação política não elimina o espírito de litigiosidade; incita-a com leis inconstitucionais (compensa correr o risco), não paga empréstimo compulsório, etc. Não cumpre com a sua parte.

Demonstra total ausência de conhecimento filosófico: procura combater os efeitos (muitos recursos serão eliminados de uma só vez havendo súmula ?vinculante?), quando se deve combater a causa, que é a litigiosidade que há na sociedade.

Essa litigiosidade decorre de um aspecto fundamental: a falta de diálogo e as imposições do píncaro da pirâmide para a base. O atual sistema jurídico romanístico impulsiona o litígio e não o consenso. Qual seria a forma de combater a litigiosidade, sem agredir o sistema democrático? No mínimo há três formas democráticas que podem ser adotadas cumulativamente para solucionar a problemática.

A primeira seria mudar o momento da conciliação, ou seja, atualmente ela ocorre após a contestação, quando o fogo já se alastrou, com os ânimos exacerbados. O cidadão já levantou provas, ficou enraivecido, declarou guerra.

A conciliação deveria ocorrer antes da contestação. Advogados e partes compareceriam perante o juiz, que faria audiência de hora em hora, e tentaria fazer o acordo (sugerimos na obra Desafios da cidadania que deveria haver a participação de membros representativos da sociedade, para que o auxiliasse na conciliação das partes); se não houvesse conciliação, então começaria a fluir o prazo para a contestação.

Evidentemente, esse estado de ânimo permitiria maior número de conciliações, além das vantagens sociais. Ganhariam a sociedade, porque a litigiosidade seria combatida na raiz; as partes, porque haveria um consenso; os advogados, evitariam um litígio infindável; o juiz, porque poderia se debruçar sobre processos que exige maior estudo.

A segunda forma seria dar ênfase à mediação e não à arbitragem como solução dos conflitos extrajudiciais. A arbitragem provoca insegurança no cidadão, porque, embora o juiz leigo que irá apreciar seja um especialista na matéria, o povo confia mais no juiz togado, ainda que este não tenha o conhecimento específico daquele. Deveria ser dada ênfase à mediação, como ocorre na França (vide obra citada, p.76), onde o mediador aproxima as partes e as induz mostrando-lhes as vantagens da conciliação, sem que haja uma decisão imposta. A decisão é de consenso; não de poder.

A terceira seria exigir a mediação e a arbitragem como forma pré-fase ao exercício do direito de ação, como se dá em muitos países (Argentina, EUA, etc.). Não se elimina o direito de ação, ele é tão-somente condicionado. Dá-se ao cidadão a oportunidade de deliberar sobre seus direitos, sem intervenção estatal, que, como se sabe, nem sempre é a melhor.

A Súmula ?vinculante? foi, indiscutivelmente, a pior forma eleita para a celeridade processual, porque totalmente ditatorial.

Silenciosamente, estrutura-se um sistema totalitário. Dentro da democracia, levanta-se uma ditadura: a do Poder Judiciário.

O ciclone tem uma característica: gira em turbilhão e destrói tudo por onde passa.

O mesmo se dá com a Reforma Processual, que passa de forma tempestuosa, sem que tenha havido uma análise prévia de seus efeitos catastróficos. Gira em turbilhão o agravo de instrumento.

Outrora, o efeito suspensivo do referido recurso era taxativo; depois, em face dos inúmeros mandados de segurança perante os Tribunais, foi ampliado o seu efeito suspensivo. Abarrotaram-se os tribunais com agravos de instrumentos, como antes ocorria com o mandado de segurança.

Agora, a regra geral é que deve ficar retido nos autos, centralizando-se no juiz a quo o poder de deliberação. Pode excepcionalmente o agravo ser encaminhado ao Tribunal; nomeado o Desembargador relator que mandará processá-lo, ou determinará fique retido aos autos para apreciação posterior.

Querem combater as infiltrações no sistema processual, sem, contudo, analisar as causas. E, como revela a Reforma a ausência de embasamento filosófico, combate-se o efeito e se esquece da causa.

Não se percebeu que, no afã de decapitar os direitos do cidadão ao Agravo de Instrumento, a causa está exatamente no local de onde a Reforma quer que promane a solução.

Explica-se: se for feita uma pesquisa em qualquer escritório de advocacia, constatar-se-á que à maioria dos agravos de instrumentos foi dado provimento pelo Tribunal. À época dos mandados de segurança, também foram concedidos torrencialmente. Onde estava o nó górdio do problema à época dos mandados de seguranças e, depois, com os agravos de instrumentos com efeito suspensivo? Nos equívocos do juiz de 1.ª instância! E o que fez agora a Reforma? Atribuiu-lhe o dom da infalibilidade: este não se equivocará, o agravo ficará retido, suprima-se o duplo grau de jurisdição.

Infere-se que a Reforma, com essa alteração processual, buscou a solução, paradoxalmente, no juiz de 1.ª instância, ou seja, outorgou-se um poder quase absoluto a quem mais se equivoca. Todos os que militam no foro sabem que o juiz de 1.ª instância leva muitos anos para ter maturidade jurídica e emocional. Tal fato é agravado em razão da possibilidade de inserção na carreira da magistratura de recém-formados.

O Estado coloca os juízes que estão amadurecendo em uma relevante função, o que é compreensível, porém pune o cidadão por causa dos equívocos daqueles, pois foi eliminado, como regra, o duplo grau de jurisdição quanto às decisões interlocutórias. Pode ser que o juiz esteja convencido de sua decisão, reafirmando-a, o que dificultaria, evidentemente, a reforma do Tribunal. Todavia, a matéria já subiria amadurecida, para essa instância apreciar.

Da forma como foi feita, como regra decapitou-se o duplo grau de jurisdição, visto que o agravo ficará retido nos autos.

Já que os agravos são decorrentes dos equívocos cometidos pelo juiz de 1.ª instância, a solução tem que surgir em face dele. Se for para deixar que a 2.ª instância os aprecie apenas em caso de recurso, dificilmente essa decisão será reformada, porquanto o processo teria que voltar à 1.ª instância, o que levaria ainda mais tempo e prejudicaria as partes.

Todavia, se a 2.ª instância pudesse apreciar o agravo imediatamente, por certo haveria reforma na maioria dos casos, como já demonstrou a experiência forense.

A lei centralizou no juiz toda autoridade do processo, postergando a figura do advogado.

Trasladando a questão para a área da medicina, constata-se que a lei deu um remédio tão forte que mata o paciente, ao invés de curá-lo.

Qual teria sido a forma democrática de solução para esse angustioso problema, que se arrasta há tempo? Algo simples e que sempre foi muito utilizado na práxis forense, com excelente resultado: o pedido de reconsideração.

Deveria a lei apenas dizer que, uma vez apresentado o mencionado pedido, o prazo seria suspenso. Qual a razão disso? O advogado, muitas vezes, constatando o equívoco do juiz, conversa com ele e o alerta. Mesmo que não haja esse diálogo, mas apenas havendo o pedido de reconsideração, ele demonstra os equívocos e o próprio juiz os corrige. Assim, quem errou teve a oportunidade de corrigir seu despacho. Como não suspende o prazo, então evidentemente se opta por interpor agravo de instrumento, porque nunca se sabe se o juiz irá apreciá-lo antes do prazo recursal. É a imposição da prudência diante de um estado de insegurança jurídica.

Mais: o pedido de reconsideração, com prazo suspenso, fará com que o juiz assuma sua decisão. Infelizmente, o que ocorre com o duplo grau de jurisdição é que muitos juízes são inconseqüentes, deixando que o tribunal sane seu equívoco. É mais cômodo…

O que se constata com a Reforma é que um procedimento rápido e eficaz foi esquecido, simplesmente para que de agora em diante o juiz seja o centralizador do processo. Provocará, porém, o ressurgimento do mandado de segurança.

Convém apenas relembrar que esse sistema processual é oriundo da Justiça do Trabalho, onde a decisão interlocutória do juiz impede o agravo de instrumento; apenas consigna-se o protesto. A legislação trabalhista, como se sabe, é oriunda da Carta de Lavoro. Mussolini morreu, seis meses depois foi extirpada da Itália. Implantada no Brasil, vige até hoje…

Como o direito processual teria a mesma missão de proteger o hipossuficiente, neutralizando o poder do empregador, centrou-se o poder no juiz, cuja missão é tutelar o empregado. Agora é lançada a mesma raiz da centralização do processo na figura do juiz também para a Justiça Comum.

Tal é o poder ditatorial criado, que, agora, também, por força do art. 285-A, do CPC, em nome da celeridade processual, o juiz pode prolatar sentença, reproduzindo-se o teor de outras proferidas em casos idênticos. Olvida-se que em tais casos, recorrendo o autor da ação ao Tribunal, haverá a morosidade que se pretendia suprimir, sem falar no fato de que o Tribunal não terá elementos para aferir se andou bem a decisão do juiz de primeiro grau; não terá fisicamente os processos nos quais o juiz se pautou para prolatar a ?decisão repetitiva?.

Um alerta: quando o Poder Judiciário, que deveria ser o maior exemplo na construção da democracia, adota essas posturas, tem-se uma situação extremamente preocupante. Precisamos ficar de sentinela, porque a liberdade aniquilada pelo Poder que deve tutelá-la é o prenúncio da decapitação dos direitos fundamentais, tornando a Constituição vazias palavras.

Tal situação evidencia uma verdadeira encruzilhada: retroagir e adotar procedimentos democráticos e compatíveis com o Estado de Direito ou, então, seguir em frente e consolidar a ditadura do Poder Judiciário da 1.ª até a última instância.

A sociedade decide: construir uma autêntica democracia, ou dentro dela entranhar novo tipo de ditadura, a do Poder Judiciário, que é a pior. As lições de Pierro Calamandrei, no livro Proceso y democracia, na atual Reforma, foram infelizmente, esquecidas…

Dirceu Galdino Cardin é vice-presidente da OAB-PR, autor dos livros: A revolução da cidadania e Desafios da cidadania.

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