O antiprocesso de Kafka

Com a promulgação da Lei 11.689/2008, que promoveu uma revolução copernicana no rito do júri, doravante, o acusado já não é mais obrigado a se submeter ao vexatório constrangimento da exposição pública, que, não raro, servia para o deleite catártico da opinião pública sedenta por sofrimento.

Doravante, o acusado, se quiser, pode se reservar ao direito de não comparecer no plenário do júri, deixando com que o julgamento se transcorra sem a sua presença. Esse direito nasce como corolário garantista do direito de não produzir prova contra si próprio, que, por sua vez, decorre do princípio nemo tenetur se detegere.

Assim, o direito de não comparecer ao plenário do júri, inspirado nas mesmas bases do direito ao silêncio, deve ser concebido como uma garantia do acusado. Trata-se de uma faculdade, não de um ônus. É um direito seu; não uma obrigação.

Portanto, da mesma forma como o silêncio pode ser exercido pelo acusado como faculdade, assim também o não comparecimento ao plenário do júri pode ser usufruído pelo réu como direito.

E, mutatis mutandis, da mesma forma como o silêncio não pode ser infligido ao réu como uma obrigação, assim também o não comparecimento ao plenário do júri não pode ser imposto ao acusado como um ônus.

Diferentemente do que podem pensar alguns, a possibilidade de julgamento perante o Tribunal do Júri, sem a presença física do réu, não foi concebida para acelerar os julgamentos ou descongestionar a pauta, mas sim para outorgar ao réu a faculdade de não se submeter à exposição pública que pode atentar contra a dignidade da pessoa humana.

Assim, com a nova redação do art. 457 do Código de Processo Penal, duas são as hipóteses legais que autorizam a realização de julgamento perante o Tribunal do Júri, sem a presença física do réu.

Primeira hipótese: o não comparecimento do acusado solto que tiver sido regularmente intimado. É a situação em que o réu está desfrutando do direito à liberdade e, uma vez instado ao comparecimento no plenário, prefere optar por não se apresentar ao julgamento. É um ato de sua deliberada vontade. Uma escolha sua. Uma opção que o réu prefere fazer e que a lei coloca à sua disposição.

Segunda hipótese: o julgamento pode ser realizado perante o Júri, na situação em que o réu esteja preso e, mediante inequívoco pedido subscrito por ele e por seu defensor, peça a dispensa de seu comparecimento.

Note-se que o legislador foi tão cauteloso que não se deu por satisfeito com a mera assinatura do advogado, no pedido de dispensa de comparecimento do réu preso. Exigiu mais do que simplesmente isto: exigiu a assinatura do próprio acusado requerendo a sua dispensa.

E se o réu não estiver solto, nem preso? Estiver foragido? O legislador silenciou. De fato, é uma situação sui generis, juridicamente híbrida, misto de réu solto, com réu preso: faticamente, não está custodiado, mas tampouco se encontra em regime jurídico de liberdade, mesmo porque permanece espiritualmente refém das angústias do processo; juridicamente, há um mandado de prisão, decorrente de uma decisão judicial, em vigor, embora o réu não esteja custodiado, mas vive homiziado, como fugitivo, na expectativa permanente de ser segregado a qualquer momento.

À míngua de expressa previsão legal, seria de se indagar: é possível a realização de júri de r&ea,cute;u foragido? A crônica judiciária tem registrado vários júris em tais situações. Mas, é preciso indagar seriamente qual a base jurídica de tal procedimento.

Para responder à indagação, cabe pensar qual a analogia mais próxima: submeter o réu foragido ao regime jurídico do réu solto ou ao regime do réu preso?

Sem dúvida, num sistema processual de base garantista, qualquer analogia deve rumar a uma interpretação que não seja prejudicial ao acusado. E aqui, entre comparar o réu foragido com o réu solto e equipará-lo ao réu preso, sem dúvida, a equiparação menos gravosa é com réu preso.

A sinonímia, aqui, é perfeita: o réu foragido deve ser equiparado, para todos os efeitos, ao réu preso que não é conduzido ao plenário situação na qual, segundo o art. 457, § 2.º, do CPP, o júri será adiado.

A situação parece não deixar dúvida; pelo simples motivo de que o Estado, em ambas as situações, não foi capaz de mobilizar o seu aparato de maneira satisfatória a cumprir o mando judicial.

Até mesmo porque, partindo do pressuposto de que o réu, no plenário do júri, exerce a autodefesa, independentemente das teses articuladas pela defesa técnica, o júri de réu foragido constituiria cerceamento de defesa.

Desde que o não comparecimento do réu ao plenário do júri é um direito (benefício), não um ônus (prejuízo), não se pode presumir que o réu foragido tenha deliberadamente escolhido o silêncio, de forma tácita, porque esta escolha deve ser expressa, conforme o art. 457, § 2.º, do CPP.

Portanto, a despeito de respeitável setor da doutrina que entende em sentido contrário, a lógica que concebeu a possibilidade de júri sem a presença física do réu não permite a realização de júri de réu foragido.

Na antológica obra O Processo, Franz Kafka narra a saga de Joseph K., um personagem alucinado que, de repente, se vê processado, julgado e condenado por um crime, em relação ao qual jamais lhe fora oportunizada uma chance de defesa.

No processo kafkiano, como a narrativa é feita do ponto de vista de Joseph K., todos os personagens do mecanismo penal são desconhecidos: o juiz está ausente, o acusador está ausente, o advogado está ausente. O leitor só conhece o acusado.

Pois a realização de um júri de réu foragido seria a consagração de um processo tão surrealista quanto o processo kafkiano, porém, de um ponto de vista diametralmente oposto: todos estariam presentes e seriam conhecidos. Só o réu, o maior interessado, estaria ausente, e, parafraseando Alexis Carrel, seria o homem desconhecido.

Adriano Sérgio Nunes Bretas é professor de Direito Processual Penal da PUC/PR e advogado criminalista em Curitiba/PR.

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