Nova lei de falências e suas repercussões criminais

Não são poucas as repercussões da nova lei de falências (Lei 11.101, de 09.02.05) no âmbito criminal. Os operadores jurídicos, com certeza, não decifrarão todas as suas controvérsias em pouco tempo. Na nossa Rede de Televisão PRO OMNIS pretendemos, dentro de uns sessenta dias, promover um curso específico sobre o tema. Mais de 170 cidades poderão ter acesso a todas as novidades trazidas pela mencionada lei (cf. www.proomnis.com.br), que foi publicada no dia 09.02.05 e entrará em vigor 120 dias após sua publicação (art. 201).

A lei citada entrará em vigor no dia 9 de junho de 2005, contando-se o prazo de vacância e de vigência nos termos do § 1.º do art. 8.º da LC 95/98, que diz: ?§ 1.º A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à sua consumação integral?.

Desde logo, há uma série de questões relacionadas com o chamado direito penal intertemporal, isto é, quando uma lei nova criminal revoga a anterior temos sempre que descobrir qual delas deve incidir no caso concreto (a antiga ou a nova). Algumas regras básicas sobre o assunto são as seguintes:

(a) lei penal nova incriminadora (lei nova que cria novo delito): é irretroativa (só alcança os fatos ocorridos da vigência para frente);

(b) lei penal nova prejudicial (porque aumentou pena, agravou sua execução, aumentou o prazo prescricional etc.): é irretroativa (só vale para fatos ocorridos da sua vigência para frente);

(c) lei penal nova favorável (porque diminuiu pena, criou condição de procedibilidade nova, restringiu prazo prescricional etc.): é retroativa (tem extraatividade e alcança os fatos passados).

No que diz respeito à prescrição, por exemplo, antes (nos crimes falimentares) ela era de dois anos sempre (art. 199 do Decreto-lei 7.661/45). Agora esse tema passou a ser regido pelo CP (art. 109 e ss.), que conta com prazos prescricionais mais longos (cf. art. 182 da Lei 11.101/05). Nesse ponto, portanto, a lei nova é desfavorável, logo, é irretroativa. Crimes ocorridos antes da sua vigência serão regidos (em matéria de prescrição) pela lei antiga. Crimes novos (ocorridos de 09 de junho em diante) serão regrados pelo novo diploma legal.

Outro exemplo: no sistema antigo, caso a denúncia ou queixa fosse recebida, seguia-se o procedimento ordinário dos crimes punidos com reclusão. Agora o procedimento passa a ser o sumário (CPP, art. 531 e ss. – cf. art. 185 da Lei 11.101/05), que é muito mais restrito. Conclusão: em relação aos crimes antigos deve ser seguido o procedimento ordinário, sob pena de cerceamento de defesa (que pode implicar a nulidade do processo, quando comprovado o prejuízo – pas de nulité sans grief).

O procedimento anterior, de outro lado, era bifásico: havia a fase do inquérito judicial e a outra era a fase processual. O próprio juiz da falência presidia as investigações, dentro de um inquérito chamado judicial. Isso acabou. Não mais existe o inquérito judicial. O juiz, sempre que vislumbrar indícios de crime, mandará cópia de tudo ao MP (art. 187, § 2.º, da Lei 11.101/05).

O sistema acusatório vigente no nosso país desde 1988, como se vê, foi reforçado com a nova lei de falências. De acordo com as regras desse sistema, as funções de acusar, defender e julgar devem ser exercidas por pessoas distintas. E é certo que ao juiz compete a tarefa de julgar, de dirimir conflitos e de preservar os direitos fundamentais. Não lhe cabe investigar crimes. Era uma anomalia muito estranha o juiz presidir a investigação preliminar nos crimes falimentares.

O STF já havia deixado muito claro, na ADI 1.570, que o juiz brasileiro não pode investigar crimes. Conseqüentemente julgou inconstitucional o art. 3.º da Lei 9.034/95 (lei do crime organizado). O juiz não foi programado constitucionalmente para investigar delitos. Não foi adotado no Brasil o sistema dos juizados de instrução. As duas últimas possibilidades (ainda hoje) que autorizam o juiz a investigar são: (a) investigação contra os próprios juízes e (b) investigação de crimes atribuídos a pessoas com prerrogativa de função (a investigação contra um deputado federal, por exemplo, é conduzida por um ministro do STF). Algo também precisa e deve ser feito para acabar com essas excrescências.

Tendo sido abolido, pela nova lei de falências (Lei 11.101/05), o inquérito judicial, que incumbia ao juiz da falência a investigação do crime falimentar, não há dúvida que, nessa fase preliminar, ganhou proeminência o Ministério Público. Logo que intimado da sentença de falência ou que concede a recuperação judicial, cabe-lhe a promoção da ação penal respectiva (caso haja algum delito a ser punido) ou a requisição da abertura de inquérito policial (Lei 11.101/05, art. 187). Note-se que o inquérito policial não é necessário. Havendo fumus delicti (prova de crime e indícios de autoria), desde logo, já pode ser intentada a ação penal.

A sentença da falência, antes, era condição de procedibilidade (CPP, art. 507): sem ela não poderia a ação penal ser exercida. Tinha repercussão, como se vê, no âmbito processual (mais precisamente, no momento da ação penal). Por força do art. 180 da nova lei de falências a sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou concede a recuperação extrajudicial mudou sua natureza jurídica: agora é condição objetiva de punibilidade. Sem ela o fato não é punível.

Condição objetiva de punibilidade é uma condição criada pelo legislador, por razões de política criminal, que está coligada não com o merecimento da pena, sim, com sua necessidade. Ela não interfere no injusto penal (fato materialmente típico + antijuridicidade) nem na culpabilidade do agente. Integra, isso sim, o fato punível (a punibilidade abstrata). Toda condição objetiva de punibilidade está fora do fato e, portanto, fora do dolo do agente. É algo a mais, um plus que o legislador passa a exigir para que o fato seja ameaçado com pena (seja punível, em tese).

Conseqüências práticas: antes da sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou concede a recuperação extrajudicial, não há nem sequer fato punível. Pode já estar configurado um injusto penal (fato materialmente típico + antijuridicidade). Pode o agente ser culpável (se podia agir de modo diverso e não agiu). Mas não existe fato ameaçado com pena. Logo, nenhuma medida restritiva de direitos pode ser adotada contra ninguém. Não há que se falar em prisão preventiva, indiciamento em inquérito policial etc.

Quem for condenado por crime falimentar, de outro lado, além de sofrer as penas cominadas para o delito (prisão mais multa), pode ainda ser sancionado com a pena específica de inabilitação para o exercício de atividade empresarial, por período de até cinco anos. Mas não se trata de pena (de efeito) automática (o). Cabe ao juiz motivar, em cada caso concreto, a necessidade dessa pena específica.

Conta-se o tempo dessa pena específica a partir da extinção da punibilidade. Leia-se: o réu primeiro cumpre a pena e, só depois disso, começa a inabilitação para o exercício de atividade empresarial (que pode perdurar por até cinco anos). Caso, entretanto, consiga a reabilitação criminal antes do seu término, cessa a pena específica. A reabilitação é possível depois do período de dois anos, após a extinção da punibilidade. Sendo assim, se o agente for reabilitado prontamente, logo em seguida a esse lapso de prazo, pode ser que consiga abreviar a pena específica de inabilitação aplicada pelo juiz.

Pelo que acaba de ser exposto, nota-se que não foram poucas as alterações introduzidas no âmbito criminal pela nova lei de falências. Mas é o tempo que vai nos permitir assimilar todas as suas novidades.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista e diretor-presidente da Rede de Ensino PRO OMNIS (1.ª Rede de Ensino Telepresencial da América Latina – www.proomnis.com.br)

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