Nova definição sobre a dispensa de provas em apuração de ato infracional

Fundando-se em interpretação literal de dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente e buscando alternativa prática às restrições impostas por doutrina e jurisprudência à conversão em internação de medidas socioeducativas aplicadas por remissão, pratica-se com certa freqüência a dispensa da audiência em continuação no processo de apuração do ato infracional. A prática inclui imediata prolação da sentença de mérito após confissão do educando, sumarizando a instrução em juízo. No entanto, recente iniciativa do Superior Tribunal de Justiça, mediante o Enunciado n.º 342 da Súmula daquela Corte, definiu o entendimento de que essa prática enfraquece as garantias constitucionais aplicáveis o processo sócio-educativo, o que causa nulidade absoluta do procedimento.

Em vista do aparente permissivo legal e das dificuldades encontradas para sustentação de medidas privativas de liberdade em decorrência do descumprimento reiterado de medida anterior aplicada em remissão (artigos 126 e 127, 2.ª parte, da Lei n.º 8.069/90), era prática dos juízos especializados em determinadas unidades da federação a aplicação do texto seco do artigo 186, § 2.º, somente instruindo o feito quando se antevisse que seria aplicada medida privativa de liberdade. Quanto aos riscos dessa alternativa judicial havia o alerta de pesquisadores do tema, consoante formulação bastante clara, já mencionada em outra oportunidade: ?As Varas Especiais da Infância e da Juventude da Capital (São Paulo) adotam a praxe de aplicar aos adolescentes acusados de envolvimento de ato infracional, nos casos em que somente temos a realização de audiência de apresentação e há confissão, medidas socioeducativas em meio aberto, sem cumulação com a remissão, o que entendemos contraria o art. 186 do Estatuto da Criança e do Adolescente?. (CASTRO, João César Barbieri Bedran de. Interpretação constitucional do artigo 186, §§ 1.º e 2.º do ECA. Boletim IBCCRIM, ano 13, n.º 158, janeiro 2006, p. 5)

No curso dessa prática, não havia dúvida de que, ao proferir sentença de mérito após a simples confissão do educando em juízo, o magistrado ganhava tempo na administração das audiências e adquiria permissão legal para proceder à conversão da medida em meio aberto sempre que o educando resistisse injustificadamente à execução. Mas a solução que economizava tempo e ?contornava? aquela discussão jurídica era muito mais aparente que real, visto que apenas substituía os problemas anteriores pela nulidade absoluta do procedimento, expondo todo o feito à renovação posterior. É que a ?sumarização? da colheita de provas para julgamento aprofundado da pretensão socioeducativa implicará sempre ofensa aos princípios da Ampla Defesa e do Contraditório, assegurados também aos educandos em processo socioeducativo, nos termos do artigo 227, § 3.º, IV, da Constituição da República; e do artigo111, III, da Lei n.º 8.069/90.

Nesse sentido já se manifestava a doutrina mais autorizada, destacando-se a conclusão de que a instrução judicial completa era pressuposto da sentença de mérito no processo socioeducativo (nesse sentido, sempre pela exemplaridade: LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 7.ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 193.).

Mais recentemente, porém, o Superior Tribunal de Justiça tomou elogiável iniciativa que tende a consolidar nova prática judicial em todos os juízos de primeiro grau dos Estados e do Distrito Federal, editando o referido Enunciado n.º 342 da Súmula correspondente, que não admite a dispensa da produção de provas em caso de ato infracional confessado pelo educando. Isso porque, segundo a jurisprudência daquele Órgão, a desistência do Ministério Público quanto à produção de outras provas em audiência, mesmo diante da confissão do jovem, ofende o direito constitucional desse indivíduo à Ampla Defesa e ao Contraditório, conforme já mencionado.

Segundo dados divulgados na página oficial do Superior Tribunal de Justiça na internet (www.stj.gov.br), a edição do novo Enunciado teve por referência entendimento reiterado em sede de habeas corpus, bem como o artigo 5.º, LV, da Constituição da República; e os artigos 110 e 186 do Estatuto da Criança e do Adolescente, condenando definitivamente a referida ?sumarização? do procedimento.

Entre as inúmeras ementas afins, chama-se a atenção para a seguinte síntese que ilustra de forma significativa a conclusão atual daquele Órgão:

?HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ECA. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO CRIME DE ROUBO CIRCUNSTANCIADO. CONFISSÃO PELO MENOR NA AUDIÊNCIA DE APRESENTAÇÃO. DESISTÊNCIA DE PRODUÇÃO DE OUTRAS PROVAS PELAS PARTES. HOMOLOGAÇÃO. INTERNAÇÃO. CERCEAMENTO DE DEFESA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. PEDIDO DE APLICAÇÃO DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA MAIS BRANDA JULGADO PREJUDICADO. 1. Verificada a violação dos princípios do devido processo legal e da ampla defesa, ante a homologação da desistência manifestada pelas partes de produzirem provas por ocasião da audiência de apresentação, com a aplicação da medida socioeducativa de internação, antes mesmo de iniciada a fase instrutória, com base apenas na confissão do menor, deve ser concedida a ordem de ofício, nos termos do art. 654, § 2.º, do CPP. 2. Anulado o processo desde a decisão que julgou procedente a representação oferecida contra o paciente, resta prejudicada a análise do pedido de que seja aplicada medida socioeducativa mais branda. 3. Habeas corpus concedido de ofício para anular a decisão que julgou procedente a representação oferecida contra o paciente, a fim de que seja realizada prévia instrução probatória, determinando-se ao adolescente que aguarde a conclusão do processo em liberdade assistida (CPP, art. 654, § 2.º). Habeas corpus julgado prejudicado.? (HC 45469 / SP; HABEAS CORPUS. 2005/0110691-1. Relator: Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA (1128). T5 – QUINTA TURMA. Unânime. Data: 13/2/2007. DJ 12/3/2007 p. 265)

Do voto do Relator Ministro Félix Fischer, colhe-se, textualmente, que:

?[..] a despeito da desistência das partes quanto à produção de outras provas, contentando-se com a confissão do menor por ocasião da realização da audiência de apresentação, não poderia ter havido homologação pelo Juízo de Direito […], tendo em vista que o direito de defesa, consagrado no art. 5.º, inc. LV, da Constituição Federal, é irrenunciável, conforme tem decidido, reiteradamente, o Supremo Tribunal Federal (HC 67.775/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 11/9/1992, p. 14.714). Nesse mesmo sentido, confira-se o seguinte julgado da Suprema Corte: PROVA – REALIZAÇÃO – DEFESA – EXERCÍCIO. O direito de defesa confunde-se com a noção de devido processo legal, além de, preservado, atender aos reclamos decorrentes do fundamento da República Federativa do Brasil que é a dignidade da pessoa humana – artigos 1.º e 5.º, inciso LV, da Constituição Federal. Ambígua a situação, tal direito há de ser viabilizado à exaustão (Coqueijo Costa), óptica robustecida quando em jogo o exercício da liberdade de ir e vir. (STF, HC 80.031/RS, Rel. p/ acórdão Min. MARCO AURÉLIO, DJ de 14/12/2001) Portanto, violados os princípios constitucionais relativos ao devido processo legal e à ampla defesa, não há negar o constrangimento ilegal imposto ao adolescente, decorrente da aplicação da medida socioeducativa de internação, com base apenas na sua confissão, deixando-se de se observar o disposto nos §§ 2.º, 3.º e 4.º do art. 186 da Lei 8.069/90.?

No mesmo tom existem vários outros julgados do Superior Tribunal de Justiça, destacadamente: HC 60939 / RJ ; HABEAS CORPUS 2006/0127006-4. Relator: Ministro FELIX FISCHER (1109). T5 – QUINTA TURMA. Data: 03/10/2006. DJ 18/12/2006 p. 432. HC 62295 / RJ; HABEAS CORPUS 2006/0148307-0. Relatora: Ministra LAURITA VAZ (1120). T5 – QUINTA TURMA. Data: 19/10/2006. DJ 27/11/2006 p. 299.

Muito embora os acórdãos mencionados se refiram em sua generalidade às medidas privativas de liberdade, não há razão para que igual entendimento não se aplique em relação a todas as medidas socioeducativas previstas no artigo 112 da Lei especial, ainda que em meio aberto, destacando-se que o novo Enunciado condena a dispensa da produção de provas por força de fundamento superior constitucional.

De outra parte, para além da tendência natural de que os magistrados de todo o País passem a adotar a nova definição da jurisprudência, não há razões para sustentar-se que todo ato infracional (mesmo o de menor gravidade) implicará instrução completa obrigatória. Isso porque resta ainda, com a devida autorização estatutária, o instituto da remissão no curso do processo, que sempre esteve previsto, na forma antes referida. Para tanto, ao colher a confissão do jovem (ou mesmo sem ela), o magistrado poderá conceder-lhe a remissão como forma de dispensar novas provas na audiência em continuação. Nesse caso, porém, vale relembrar que não será possível evitar as dificuldades da conversão da medida aplicada em remissão em caso de descumprimento reiterado, visto que a remissão só admite a aplicação de medidas em meio aberto, conforme já mencionado.

Em conclusão, embora com aparentes vantagens para administração do tempo e possibilidade de conversão de medidas, a prática judiciária de sentenciar de imediato o processo socioeducativo, logo após a confissão do educando, implica nulidade absoluta por ofensa a princípios constitucionais incidentes. Agora, o reconhecimento dessa nulidade em enunciado da Súmula do Superior Tribunal de Justiça deve orientar mudança da prática em primeiro grau de jurisdição, assegurando a colheita integral das provas antes da cognição aprofundada do tema.

André Del Grossi Assumpção é promotor de Justiça da Infância e da Juventude em Iretama-Paraná.

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