Nazismo, Holocausto e Direito Penal de Autor

g11.jpgEm 30 de abril de 1945 Hitler se suicidou em seu bunker. Três dias depois o Exército Vermelho russo tomava Berlim, capital do III Reich nazista. Há sessenta anos decretava-se o fim da II Guerra Mundial. O nazismo pretendia dominar o mundo por mil anos, mas não resistiu a doze (1933 a 1945).

Qual a principal lição que aprendemos? A humanidade não tolera o horror e o holocausto! Seis milhões de judeus morreram (dos quais, 1,5 milhão de crianças); três milhões de homossexuais, ciganos, comunistas, deficientes físicos, negros e testemunhas de Jeová também foram dizimados. O mais chocante: tudo foi feito com base na lei!

Isso comprova que o positivismo legalista não conseguia (e não consegue) limitar o legislador. Que, com base na lei, é possível mandar para os fornos milhões de pessoas. Que o Direito penal não pode ter como finalidade só o cumprimento da norma. Se a norma for injusta e aberrante não se lhe pode dar cumprimento. Mas no tempo do nazismo vivia-se ainda sob o império do Estado liberal (Estado de Direito puro e simples). Confundia-se lei com Direito. Estado de Direito era, na verdade, estado de legalidade. Confundia-se também vigência com validade da lei. A ciência penal da época tentou reagir contra os desmandos do nazismo. Tentou impor limites ao legislador. Isso foi feito, sobretudo, por Welzel (1904-1977) que, criticando a visão causalista e neokantista precedente, forjou a teoria das categorias lógico-objetivas (ontológicas), na crença de que elas vinculariam o Poder Legislativo. Tais categorias eram: (a) toda ação é finalista; (b) o homem conta com autodeterminação. O sonho de Welzel não se concretizou. O mundo legiferante pouca atenção dá para o mundo acadêmico. Vivem de costas um para o outro.

Era preciso inventar outra artificialidade para pôr freio à atividade do legislador ordinário. Nasce assim, logo após a II Guerra Mundial, o constitucionalismo. Concomitantemente eclode a noção de Estado Constitucional de Direito, que se caracteriza, em princípio, consoante Ferrajoli (Direito e razão, RT, 2002), por duas artificialidades: (a) positivação dos direitos humanos fundamentais; (b) positivação de regras formais e substanciais para a produção do Direito. O legislador já não pode escrever em textos legais o que bem entende. Toda lei só vale quando segue o procedimento formal de sua criação e nos limites dos direitos fundamentais. Vigência não se confunde com validade. A vigência está regida pela lógica das maiorias (democracia das maiorias). Validade significa compatibilidade do texto aprovado com a Constituição (democracia substancial).

Para se assegurar o respeito aos direitos e garantias fundamentais surgiu uma terceira artificialidade, que é o controle de constitucionalidade das leis. Toda antinomia (conflito positivo entre a produção legislativa e a Constituição) ou lacuna (omissão legislativa) deve ser eliminada pelo órgão que faz o controle de constitucionalidade (Poder Judiciário).

Inconcebível, destarte, diante do contexto histórico do século passado, supor que o Direito penal não tenha outra finalidade que não seja o cumprimento da norma (Jakobs). Sempre e quando a norma for aberrante e injusta, não se lhe pode dar cumprimento. O juiz já não é a ?boca da lei? nem a ?boca do Direito?, sim, a boca ?dos direitos humanos fundamentais?. Do contrário, a humanidade sempre corre o risco de testemunhar novos holocaustos (tal como ocorreram em Ruanda, ex-Iugoslávia, etc.).

A utopia com a qual temos que trabalhar neste princípio de novo século é a de que, com as garantias do Estado Constitucional e Democrático de Direito, talvez seja possível aplacar todos os holocaustos em curso ou projetados. No âmbito estrito do Direito penal, de forma alguma podemos dar abrigo para o chamado Direito penal ?de autor?, que condena a pessoa não pelo que fez, sim, pelo que é. Todos os que foram condenados pelo nazismo, mas particularmente as 1,5 milhão de crianças judias, perguntavam: ?o que eu fiz para ser condenado à morte?? Os executores respondiam: ?você não fez, você é judeu, você é homossexual, negro, deficiente físico, etc.?

No atual Estado Constitucional de Direito isso está absolutamente vedado. O único Direito penal compatível com ele é o ?do fato?, que exige a exteriorização de um fato ofensivo grave a bens jurídicos relevantes de terceiros. Fora desse limite jamais pode ter incidência o poder punitivo estatal, que deve ser contido e vigiado diuturnamente.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente do IELF PRO OMNIS: 1.ª Rede de Ensino Telepresencial da América Latina www.proomnis.com.br)

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