Tempos de ninar e tempos de combater

Basta o dia ficar acinzentado e o vento frio encontrar frestas para entrar e anunciar o tempo de recolhimento que o cérebro começa a agitar-se mais ainda, talvez tentando aquecer-se, exercitando-se para não esquecer.

Nesse tempo, é impossível conter o desfile de fatos e imagens já vividos que teimam em renascer, insinuando explicações para as escolhas que fiz na vida.

Recentemente, assalta-me a memória a imagem de uma professora francesa, Madame Stourdzé se não me falham os neurônios que, durante uma palestra no Salão Nobre do Colégio Estadual do Paraná, em 19… – faço questão de ocultar a data enunciava uma nova maneira de tratar os alunos. Dizia ela, balançando significativamente a cabeça e fazendo com os finos e elegantes braços o gesto correspondente: "Il faut bercer les élèves". ("É preciso ninar as crianças".). O magistério associava-se à ação protetora e atenciosa, serena e acolhedora dos braços da mãe e do pai, ritmando o tempo e a vontade infantil pelo gesto e pelas cantigas. Não para adormecer, mas para acalentar, aconchegar.

Os anos passaram, e foram muitos, mas a imagem persiste e, por vezes, me descubro exercitando essa postura didático-pedagógica de dar suporte e atenção ao educando. Ninar os alunos para que se sintam confortáveis, seguros, atendidos.

No tempo de Madame Stourdzé, que foi também o meu, pregar educação como atenção materna representava um novo paradigma. Era urgente trazer para o aconchego os estudantes maltratados da escola repressora e repetitiva. Humanizar e acarinhar eram, naquele momento, palavras de ordem, pregação de um novo caminho. Bercer les élèves, apesar das notas baixas, dos castigos em forma de cópia de centenas de linhas de frases estúpidas, de alunos silenciosos e silenciados, de matérias e pontos decorados para devolver em avaliações reprodutoras e reprodutivas. Naquele tempo, se fazia urgente a humanização das relações escolares. Madame Stourdzé trazia a novidade, surgida do outro lado do Atlântico.

Ela teve razão. Por algum tempo.

Hoje, quando vejo a escola envolta pela violência da sociedade e, muito mais desolador, tendo criado sua própria violência, entendo que a imagem lírica de um professor ninando seus alunos só pode representar um engano, uma alucinação, uma piada de muito mau gosto. Pesquisa recente na cidade de São Paulo constatou que 47% dos professores e funcionários já foram ofendidos e xingados pelos alunos. Periodicamente a violência em sua forma letal atinge alunos e professores. Livros não mais. Armas, muitas mais. O inocente chiclete foi substituído pela droga. As salas de aula converteram-se em dormitório, refeitório, parlatório. Muitos profissionais do magistério as consideram o purgatório, de que sairão (nelas não permanecerão!) rumo ao paraíso.

Em lugar do berço, o navio à deriva. Ambos balançam, mas só um acaricia.

Faltam aproximadamente 360 mil professores nas escolas brasileiras. O desencanto com a profissão está relacionado com a imagem social do professor. Disso ninguém duvida. A perda da auto-estima origina um País que se vê compelido a glamorizar a ignorância na impossibilidade de considerar meritório o saber. Para conter o decréscimo de profissionais do magistério foi criada pelo MEC a UAB Universidade Aberta do Brasil, com a finalidade de formar (???) professores para a educação básica. Já se estima em 90.000, o número de pessoas a se matricular inicialmente. Nem carinho, nem violência. Teremos futuramente professores acostumados a lidar com máquinas.

Anestesiados hoje pela alienação e pela atitude obstinada de menosprezar a informação e o saber embora a humanidade nunca tenha tido acesso tão livre e quase sem custos a todo tipo de informação caminhamos a passos largos para uma educação de fato para poucos. Para todos os demais, a mediocridade. Em nossa "sociedade do espetáculo", como quer Guy Debord, "a desinformação seria o mau uso da verdade. Quem a prefere é culpado, e quem nela crê, é imbecil".

Creio ter descoberto porque a imagem de Madame Stourdzé tem retornado com freqüência a minha memória. Integra a utopia da educação humanista. Não acredito mais em ninar alunos, mas creio na possibilidade de ajudá-los a encontrar seu ritmo, seu caminho, sua identidade. Sempre com a vigilância atenta e mediadora do professor que entende ser necessário combater com humanismo e saber, porque a "desinformação (…) deve conter uma certa parte de verdade, mas é deliberadamente manipulada por um hábil inimigo" , nas palavras de Debord.

Deixar os alunos desinformados em relação ao mundo a sua volta é torná-los presa fácil de implacável inimigo.

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