Questão de valores

Os jornais noticiaram, no início de março, a demissão de Harry Stonecipher da presidência da Boeing por ter mantido um caso extraconjugal com uma executiva da companhia. Paradoxalmente, Stonecipher, já aposentado, foi chamado, em dezembro de 2003, para devolver equilíbrio à empresa, depois que a Boeing perdeu lucrativos contratos com o Pentágono devido ao escândalo que envolveu o então presidente Phil Condit. A dureza da decisão é certamente conseqüência da atual preocupação americana com os desvios aos códigos de conduta e valores organizacionais.

O tempo todo nossos comportamentos são regidos por valores e normas sociais, ou pelo menos deveriam ser. Freqüentemente confundidos, são eles que nos permitem identificar o que é bom e o que é mau, no caso dos valores; o que é certo e o que é errado, no caso das normas. Desta confusão, resulta que, em alguns casos, o certo é mau e o errado é bom. Vamos examinar um caso real.

Um grupo composto por diretores e gerentes está participando de um seminário. Numa das noites, os organizadores do evento programam um jantar em um restaurante afastado do hotel onde estão hospedados. Na volta do jantar, cerca de 21h, o diretor de recursos humanos saca seu celular e, dentro do ônibus onde estão, liga para a mulher. Pela conversa, dá para perceber que ela manifesta uma certa surpresa pelo fato do marido estar ligando tão cedo. Ele contra-argumenta, dizendo que ligou cedo para não acordá-la, talvez chegasse tarde do jantar. Quando o ônibus pára em frente ao hotel, o grupo, encabeçado pelo então diretor, decide ir para uma boate com shows de strip-tease. Voltam para o hotel às 5h da manhã. O seminário começa às 8h.

É errado assistir a um show de strip-tease? Dentro das normas daquele grupo, não. Vamos, entretanto, examinar o comportamento do grupo, particularmente do diretor de RH, à luz dos valores. Este caso levanta uma questão séria: será que as diferentes posições dentro de uma organização estão sujeitas ou não aos mesmos valores?

O fato de o diretor de RH mentir para a sua mulher, na frente dos seus pares e alguns subordinados, é mais ou menos grave do que se ele fosse diretor de operações? E o fato de ir para uma boate e voltar às 5 horas é mais ou menos grave do que se ele fosse o diretor financeiro? Fazendo juízo de valor, para mim, a resposta é: sim, é mais grave!

Na posição que ocupa, um diretor de recursos humanos está sujeito a um quadro de valores um pouco mais exigente que um diretor de operações, por exemplo. Em termos absolutos, a mentira é má e condenável para qualquer posição ou pessoa. No entanto, para alguns cargos suas repercussões e desdobramentos são muito mais sérios. Pelo fato de ocupar uma posição que desenvolve e administra políticas que interferem na vida, às vezes, de centenas de pessoas, não é razoável que um diretor de RH seja visto e percebido como uma pessoa que mente. Por outro lado, por ser normalmente o patrocinador ou organizador de treinamentos, não é razoável que ele encabece atividades noturnas que se prolonguem até a madrugada, comprometendo o rendimento de todos os participantes do seminário.

Muitas vezes, o limite entre os espaços privado e profissional não é muito claro, criando uma zona cinzenta onde podem ocorrer conflitos que não podem ser resolvidos pelas normas, senão pelos valores. À luz destes, não foi bom o comportamento do RH, mais especificamente foi mau.

Considerando que valores e normas podem ser confundidos e que os primeiros nem sempre estão explícitos, como descobrir quais são os valores de uma organização? Onde encontrá-los? Genericamente, eles estão em toda a parte: na arquitetura, no layout, nos móveis, nas roupas das pessoas, na portaria, no restaurante, na comida, no estacionamento, além, é claro, nas decisões. Para conhecer valores de uma organização, nada mais interessante do que ouvir histórias, principalmente aquelas que envolvem as lideranças, os fundadores.

Celso Ferreira, diretor da Camargo Corrêa, empresa líder no setor de engenharia e construção na América Latina, gosta de contar uma história sobre a visita de Sebastião Camargo, fundador da construtora, a uma obra que ele gerenciava. O Celso todo empolgado falava dos progressos da obra para um Sebastião que, de cabeça baixa, caminhava lentamente no canteiro de obras. Depois de um algum tempo, sentindo que não obtinha a atenção do chefe, Celso olha para o chão e vê que Sebastião dava pequenos chutes em um prego que estava caído. Celso capta a mensagem, abaixa-se, pega o prego e, só então consegue obter a atenção do dono da empresa. A mensagem era clara. Como esta história vem sendo repetida há anos, ela cumpre até hoje o papel pretendido pelo fundador: usar o exemplo para difundir o comportamento desejado – economia.

Numa fábrica, o gerente de RH exibe vários envelopes de correspondências dirigidas a ele, alguns com o carimbo de confidencial. No verso, junto à abertura dos envelopes, a assinatura do gerente da fábrica que violava as correspondências e assinava assumindo a autoria da violação. Segundo o gerente da fábrica, qualquer correspondência enviada não podia ser confidencial. Este caso, também real, ilustra a situação mais dramática: quando valores e normas são desrespeitados, gerando uma situação insustentável. Afinal, os valores pessoais do gerente da fábrica colidem não só com os dessas pessoas que trabalham com ele, mas também com os da sociedade.

Mais um exemplo. O diretor de uma organização procura a área de RH para informar que encontrou uma das funcionárias da organização trabalhando, à noite, numa casa de prostituição de luxo. A moça não exercia uma posição gerencial, era de uma área administrativa. Ele exige que ela seja demitida. A reação do profissional de RH foi, primeiro, questioná-lo pelo fato de que ele, casado, também estava lá. Em segundo lugar, de resistir à pressão, visto que a moça não se identificava como funcionária da empresa e, também, não exercia nenhuma função que fosse incompatível com sua outra atividade.

Num tempo em que as cidades são vigiadas por milhares de câmeras; em que as correspondências eletrônicas são passíveis de rastreamento e acesso; em que satélites vigiam carros e também pessoas através de chips subcutâneos; é de extrema importância refletir, discutir e definir normas e valores; reduzindo assim as zonas cinzentas.

Dentre os escândalos recentes envolvendo empresas, os jornais noticiaram que Bernie Ebbers, fundador e ex-presidente da WorldCom, manipulou seus balanços e escondeu prejuízos de bilhões de dólares, obtendo de sua empresa um empréstimo pessoal de US$ 400 milhões para especular no mercado financeiro. No caso de Ebbers, é impressionante como as pessoas foram iludidas pelas aparências e não conseguiram ver a essência. Em um recente seminário nos Estados Unidos, um importante empresário brasileiro contou que ficou encantado com o estilo do executivo americano: vestido de caubói e com as botas sujas de terra. No caso dele, certamente a terra era cenográfica, puro teatro para iludir incautos. O grande benefício desta crise é que esses escândalos estão vindo à tona e podem indicar um movimento na direção da reflexão e do revigoramento de valores substanciais das empresas. Para alguns pode ser, também, o prenúncio de um movimento radical xiita. Seja como for, está na hora de discutir valores.

Odino Marcondes é sociólogo, consultor de Organizações e diretor da Marcondes & Consultores Associados.

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