Quando manias viram transtorno

Quando chega em casa, o escritor Melvin Udall abre a porta com luvas. Tranca e fecha a mesma cinco vezes. Acende e apaga a luz cinco vezes. Deixa as luvas no lixo. Vai para o banheiro, pega um sabonete e lava a mão com água muito quente. Joga fora o sabão e pega outro. Repete o procedimento e descarta o segundo sabonete. Ao sair na rua, Udall anda em linha reta e evita ao máximo o contato com as pessoas. Vai ao restaurante e senta sempre na mesma mesa, nem que precise espantar clientes do estabelecimento para conseguir o que quer. Além disso tudo, leva seus próprios talheres de plástico.

O escritor tem Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), uma doença psiquiátrica que se caracteriza pela presença de obsessões que ocupam boa parte do tempo da pessoa. Udall é o personagem interpretado pelo ator Jack Nicholson no filme Melhor impossível, lançado em 1997. Entretanto, o TOC não é retratado apenas na ficção. Na vida real, a incidência é considerada alta, sendo que 2,5% da população mundial pode desenvolver a doença.

O professor Décio Zanoni, do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e Faculdades Dom Bosco, explica que geralmente se acredita que o transtorno seja mania, mas não é. "Todos têm suas manias e isso é normal. O TOC tem que ser visto como um distúrbio de comportamento", afirma.

O portador do transtorno tem imagens e pensamentos que povoam a sua mente e geram uma enorme ansiedade. Os impulsos que surgem na consciência muitas vezes são incompreensíveis para a pessoa. Por isso traz muito sofrimento e afeta os relacionamentos sociais e profissionais. Ela se vê obrigada a tomar atitudes frente a uma preocupação incontrolável. Uma das formas de eliminar o pensamento é a compulsão, o que diminui a ansiedade dessas obsessões.

Isso gera uma série de rituais. Um deles é lavar as mãos constantemente, pela obsessão de contaminação. O portador toca a maçaneta da porta e fica com medo de pegar alguma doença grave. "Ele só fica pensando naquilo e acaba fazendo o ritual. Tem gente que chega a escaldar as mãos e usar o sabonete uma única vez", comenta Zanoni.

A contaminação e a necessidade de checar algo várias vezes são as duas obsessões mais freqüentes. O tipo de ritual e de obsessão vai variar de acordo com a história pessoal de cada um. O psiquiatra André Astete esclarece que as imagens que surgem na cabeça também podem ser de violência. "O ritual não é a única resposta. Pode vir uma imagem de esfaquear alguém, por exemplo. O medo disso faz com que a pessoa fique longe de facas. Tive um paciente que tinha medo de ir para a cozinha porque poderia ter um pensamento desse, pegar uma faca e matar alguém de sua família", revela.

Os rituais aliviam o incômodo e anulam as obsessões. Cada uma delas causa preocupação se esse procedimento não for realizado. As pessoas com TOC fazem os rituais com medo de que algo terrível aconteça, envolvendo inclusive morte de familiares. O portador acredita que, se não for e voltar pelo mesmo caminho, a mãe dele pode morrer, por exemplo.

Ainda faltam profissionais capacitados

O cantor Roberto Carlos admitiu no ano passado que tem Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC). Na época, declarou que sofria com a doença há cinco anos. Ele acreditava que pudesse se curar sozinho com a ajuda de livros sobre o assunto, mas percebeu que a situação era mais séria do que imaginava. "Ainda não estou curado. Vou continuar a entrar e sair pela mesma porta. Mas já penso em usar outras cores", afirmou na ocasião.

Um dos benefícios do tratamento ao qual está sendo submetido é voltar a cantar músicas que tinham palavras com características negativas, como Quero que vá tudo pro inferno. Ele disse que teve um período da vida dele que não queria cantar certo tipo de música e falar algumas palavras. Achava que era superstição. "Estou fazendo tratamento e pode ser que volte a cantar essa música", informou. Roberto Carlos já pensa em relançar seu primeiro disco, Louco de amor, que considerava "maldito". A atriz Luciana Vendramini também declarou publicamente ter TOC. Entre seus rituais estava dormir apenas depois de ouvir um número certo de buzinas ou carros de uma mesma cor passando na rua.

A vice-presidente da Associação Brasileira de Síndrome de Tourette, Tiques e Transtorno Obsessivo-Compulsivo (Astoc), Maura Carvalho, conclui que a declaração de Roberto Carlos fez com que a doença se tornasse mais conhecida pela população em geral. "Ele é o rei. Se ele tem, tudo bem. Por causa da declaração dele, milhares de pessoas nos procuraram", comenta.

Há 15 anos, ninguém sabia o que era TOC e conseguir um diagnóstico era muito difícil. A associação foi criada em 1996 para suprir a necessidade de informações, inclusive entre a classe médica. Maura é uma das fundadoras da entidade. Mãe de uma menina com o transtorno, ela não sabia o que fazer para melhorar a situação. "Via minha filha lavando a mão daquele jeito e pensava: mas minha filha é normal. Ela ficou três anos fazendo um monte de tratamento errado", lembra.

Os portadores da doença também sofrem com a discriminação, o que acontece pela falta de informação, segundo Maura. Quem expõe os sintomas de TOC é chamado de louco por aqueles que não conhecem o transtorno. Para ela, é uma doença biopsicossocial, pois envolve a possibilidade de ser transmitida geneticamente, os sintomas que comprometem o estado psicológico e o estigma da sociedade. "Quanto mais cedo se diagnosticar, melhor. Mania todo mundo tem, mas quando toma tempo de mais e a pessoa fica angustiada porque não ficou da forma que queria, tem algum problema", diz.

Uma professora que não conhece o TOC, por exemplo, não vai saber lidar com um aluno que apresenta os sintomas. Vai tirá-lo da sala de aula e brigar com ele, prejudicando-o profundamente. "Se a professora tem instrução, leu ou viu algo sobre TOC, é um grande passo para orientar a família sobre o que está acontecendo. A criança tem mais chances", avalia Maura. Ela comenta que ainda falta capacitação de profissionais de saúde nesta área. Em São Paulo, em parceria com a Prefeitura e a Universidade de São Paulo (USP), a associação conseguiu treinar 22 pessoas em um ano. (JC) Serviço: Mais informações pelo telefone (11) 3085-2978 e no site www.astoc.org.br.

Resultado só aparece com doses altas de medicamentos

O psiquiatra André Astete comenta que o TOC possui curiosidades bem diferentes em relação a outras doenças psíquicas. O transtorno só melhora com medicamentos que agem na serotonina, substância presente no cérebro. As doses precisam ser altas para que algum resultado apareça. De acordo com o psiquiatra, as causas da doença ainda não são claras. Uma evidência biológica são algumas lesões e patologias em áreas do cérebro. Alguns desses casos apresentam o desenvolvimento de obsessões. Além disso, também há a influência genética.

O tratamento para o TOC alia medicamentos e terapia cognitivo-comportamental. Os remédios indicados são alguns anti-depressivos em doses mais elevadas do que as receitadas para pessoas com depressão. "Com o passar do tempo, a pessoa com TOC vai mudando de obsessão, tendo novos tipos de preocupação. Os remédios reduzem a possibilidade de aparecimento de obsessões novas e diminuem a intensidade, o grau de preocupação e a freqüência", afirma Astete.

Mas a resposta aos medicamentos é parcial, tendo uma eficiência média de 40%. Em muitos casos, os rituais não são afetados somente com este método. Por isso, a psicoterapia também é aplicada no tratamento. "Faz a pessoa com TOC enfrentar o problema, até mesmo provocando uma situação. Ela vai abandonando os rituais. É um trabalho minucioso. Os pacientes que procuram tratamento aumentam a qualidade de vida e levam uma rotina normal. Mas somente alguns ficam totalmente assintomáticos", enfatiza o psiquiatra.

Com a terapia, a pessoa com o transtorno vai aprendendo a controlar a ansiedade, aplicando as técnicas por conta própria para enfrentar seus problemas. Somente procura ajuda especializada se não der conta. A permanência dos remédios depende da pessoa, que pode até passar anos sem a apresentação de obsessões. "Alguns podem até ficar totalmente livres dos remédios. Mas os médicos mantêm um contato periódico. No fundo, o TOC é uma doença crônica. Não tem cura", diz Astete.

Segundo o psicólogo Décio Zanoni, o paciente é informado de que pode ter uma recaída e existe a necessidade de continuar sendo acompanhado. A doença normalmente se manifesta no final da adolescência e início da fase adulta. Há probabilidade de apresentar sintomas ainda na infância. (JC)

"Era absurdo o que eu fazia"

Há três anos, Jorge (nome fictício) tem seu Transtorno Obsessivo-Compulsivo controlado. Mas sofreu muito até chegar ao ponto onde se encontra, com uma melhor qualidade de vida. Ele tinha mania de limpeza e sempre foi muito organizado. Jorge, porém, sentiu que a mania o estava incomodando profissionalmente e em sua casa. A esposa dele lembra que a mania começou a extrapolar os limites. Quando chegava em casa, levava duas horas para passar pela sala, cozinha e banheiro até chegar ao quarto. "Ele fechava as cortinas, arrumava todas as franjas do tapete e as almofadas do sofá. Onde ia passando, ele tinha que arrumar." Depois disso, tomava um banho de duas horas. Chegava a lavar a saboneteira por muito tempo para que ficasse limpa.

Jorge explica que também se sentia obrigado a entrar e sair pela mesma porta. Se não fizesse isso, achava que algo de muito ruim poderia acontecer com ele ou com suas filhas. Tinha que ir e voltar pelo mesmo caminho. Caso não fosse possível, dava desculpas para não sair de casa. Saía quatro horas antes para ir trabalhar. Abria sua loja e começava a verificar tudo várias vezes. "Mesmo no trabalho, me policiava para saber onde andei, para voltar pelo mesmo lugar", diz.

Jorge procurou ajuda porque percebeu que havia se tornado escravo de seus rituais. Passou a tomar medicamentos, o que faz até hoje, e começou a fazer terapia para enfrentar sua ansiedade. "Graças a Deus, deu certo. Já consigo ir para um lugar por um caminho e voltar por outro." Mas ele não seguiu o tratamento corretamente algumas vezes, quando percebia que já apresentava melhoras. Isso prejudicou a recuperação e fez com que surgissem crises. A esposa de Jorge relembra uma ocasião na qual ele ficou horas de joelho no chão tentando tirar uma pequena sujeira do azulejo. "Hoje paro e penso como era absurdo o que eu fazia. Tenho até medo de pensar em não tomar os remédios", afirma Jorge. Ele e a mulher orientam outros pais a ficarem de olho nos filhos para detectar comportamentos estranhos, pois existe a tendência genética. Não há uma associação paranaense de apoio aos portadores e familiares. Os dois possuem a intenção de preencher esta lacuna futuramente. (JC)

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