Preenchido silêncio histórico do império hitita

ARQUEOLOGIA NO ORIENTE MÉDIO

A cultura dos povos reflete em certa medida o saber da história passada. Apesar da farta documentação disponível e de outras fontes do conhecimento, ainda persistem algumas lacunas dentro do panorama histórico. A arqueologia, ciência moderna que estuda os vestígios do passado, vem sucessivamente preenchendo esses vácuos, tornando a história mais compreensiva.

Uma dessas lacunas que permaneceu como tal até final do século XIX, foi a relacionada com a existência do povo hitita. Nenhuma fonte antiga, nenhuma referência mesmo indireta, fazia alusão a esse povo. As únicas referências encontravam-se na Bíblia que fora escrita por autores israelitas. Ali o povo hitita aparece com o denominativo de hittim, vocábulo semita que ao ser traduzido para o alemão, adquiriu a forma hethiter; no inglês, hittites; no francês, hetheen; e nas línguas latinas, hititas.

No livro de Números capítulo 13, verso 29, Israel recebe a promessa por intermédio de Josué, que Deus expulsaria os “heteus” e outros povos das terras de Canaã (Jos. 3:10). No conflito com os sírios, a nação israelita é libertada por Deus fazendo ouvir “ruído de carros e cavalos como de um grande exército” que os sírios pensavam ser os “reis dos heteus” (II Reis 7:6), e fugiram.

Embora essas referências permaneceram através dos milênios, os historiadores não acreditavam na possibilidade da existência do império hitita, alentados pelo ceticismo de críticos contra a veracidade do relato bíblico. Dessa forma, a história do império hitita permaneceu ignorada por vários séculos como um vácuo dentro do cenário da história antiga.

Início da hititologia

Em 1830, Charles Felix Marie Texier, viajor francês e arqueólogo por paixão da ciência, preparou uma viagem que o conduziu ao coração da antiga região da Anatólia (do grego: levante do sol). Após sua chegada ao território da atual Turquia, em 28 de julho de 1834, dirigiu sua caravana em direção norte. Um dia, após um passeio solitário a cavalo, achou umas ruínas não longe da pequena vila de Boghas-Keui, ou Boghaskoy. Texier encontrou os vestígios de uma muralha que se estendia por vários quilômetros.

Mais tarde, descobriu dois portões monumentais, um deles emoldurado por um baixo-relevo representando uma silhueta humana, talvez de um rei. O outro lado do portão estava ornamentado de leões esculpidos sobre a pedra. Seguindo pelo vale a duas horas de marcha da vila, ele descobriu uma rocha com uma inscrição, mais tarde traduzida como iasilikaia. A seguir, apareceram baixos-relevos de figuras estranhas sobre rochas, um cortejo de deuses seguido por sacerdotes. Por uma estreita passagem, encontrou duas esculturas de demônios alados montando guarda naquela entrada.

Em 1839, Texier publicou em Paris os resultados da sua viagem numa obra monumental contendo vários volumes e sob o título Description de l?Asie Mineure. Um ano mais tarde, o arqueólogo inglês William Hamilton descobre em Boghaskoy um novo campo de ruínas. Em 1862, o sábio francês George Perrot encontrou um grande número de monumentos e uma rocha inclinada, conhecida com o nome de Nisantepe. Perrot descreveu as ruínas de Boghaskoy na sua obra Histoire de l?art dans l?antiquité.

A identificação das ruínas de Boghaskoy só veio algumas décadas após seu primeiro descobrimento. Foi o arcebispo Henry Sayce que com inesgotável esforço, dedicou-se ao estudo das inscrições de Boghaskoy. Ele pretendia descobrir certas particularidades dessa grafia de caracteres hieroglíficos.

Inventor dos hititas

Assim, em 1879, Sayce publica um artigo com o título Os hititas na Ásia Menor. Em 1880, Sayce pronuncia um discurso diante da Sociedade de Arqueologia Bíblica, no qual fundamenta a história do império hitita. A incredulidade sobre seus argumentos foi tal que lhe valeu o título de “inventor dos hititas”. Certamente não merecia, pois dois anos antes, o missionário inglês William Wright havia publicado na British and Foreign Evangelical Review um artigo no qual atribuía aos hititas as ruínas recentes descobertas na Ásia Menor.

Foi também em 1880 que os anais assírios foram traduzidos, fornecendo indícios sobre o império hitita, embora não permitindo conclusões definitivas. Esses anais fazem perguntas e alusões aos “pais de Hatti” ou “Chati”. Em 1884, William Wright publica um livro sob o título The empire of the hittites with the decipherment of hittite inscriptions by prof. A. H. Sayce, o qual desencadeia uma violenta polêmica acadêmica entre os adversários e partidários da existência do império hitita. A despeito da luta verbal, e graças à forte argumentação exposta por Wright, não é mais possível manter silêncio sobre a história do povo hitita. Pelo contrário, dá-se início à hititologia.

História não escrita

As descobertas em 1887 das cartas de Tell el-Amarna, no Egito, permitiram um suporte maior à tese da história dos hititas. Flinders Petrie, em 1892, iniciou a tradução das referidas cartas, entre as quais encontravam-se duas de governadores hititas, dirigidas ao faraó do Egito. A mais importante é a enviada pelo rei hitita Supiluliumas, parabenizando ao faraó Akhenaten pela sua ascensão ao trono.

Outros textos egípcios relatam lutas contínuas com os habitantes de “Hatta”, que é o vocábulo hieroglífico usado para identificar os hititas. Na atualidade, a quantidade de informações arqueológicas sobre o império hitita é tal, que parece estar preenchido o vácuo deixado pelo silêncio dos historiadores do passado, embora a Bíblia tenha sido o único documento a fazer essa referência.

Rubén Aguilar

é doutor em História Antiga pela USP, arqueólogo e professor do curso de Teologia no Unasp, Campus Engenheiro Coelho, SP.

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