Pequeno tratado sobre a importância da biblioteca

Convido meus poucos leitores a um mergulho no tempo: seu ou dos seus.

Lembram-se daquelas fotos antigas em que alunos de guarda-pó branco sentavam-se com os braços apoiados numa pequena mesa, com um globo terrestre, uma placa identificando a série escolar, ao fundo um mapa, uma bandeira, ou uma parede com livros? Lembram-se de ter visto (e mesmo caído em solta gargalhada) nas feições do menino ou da menina o estado de inocência e de origem das atuais rugas e flacidez do rosto de tios, pais, irmãos mais velhos, amigos? Aquele sorriso posado, meio sem graça, mas com a marca indelével da esperança no futuro e o orgulho de estar na escola diante do fotógrafo? Quem não lembra das mãos sobrepostas, em estado de concentração, à espera do clique das máquinas (hoje consideradas enormes) pretas, ameaçadoras, um olho vazio, investigativo?

Era uma foto Itabira: hoje ?apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói!?, como na lira de Drummond.

Lembram-se da primeira vez que entraram em uma biblioteca de verdade? Não a da parede ao fundo da foto. Aquela de estantes tortas por causa do peso dos livros. Aquela dos livros amarelados pelos anos, mofados pelo descaso, esquecidos da luz e da leitura? Aquela biblioteca silenciosa, em que Dona Não-me-lembro-o-nome sentava, vigilante, os óculos a despencar nariz abaixo, cara sisuda, olhar reprovador? E o deslizar silencioso entre muralhas de papel, em busca do livro precioso para realizar o trabalho necessário, na bem intencionada pesquisa cobrada pelo professor? E como, num ritual compenetrado, abria-se com sofreguidão e cuidado o livro em busca da resposta, em busca do trecho na medida exata da pergunta do questionário? Como, de vez em quando, a concentração era interrompida por um ?Shhhhhhiiiiitttt?, quase em sussurro, da velha guardiã, cercada de fichas e carimbos?

Dói a lembrança da criança e da biblioteca que não existem mais.

Na Academia Brasileira de Letras acaba de ser eleito um homem de livros, de uma biblioteca digna de foto artística em revista internacional, de um acervo de livros valiosos e raros. José Mindlin, o bibliófilo, torna-se imortal, no ritual ditado pelos valores auto-atribuídos da Academia. Nem o fardão, nem o título, nem a consagração pública sepultam, porém, a imagem de Mindlin confessando, em um congresso no Rio de Janeiro, alguns poucos anos atrás, o hábito de sentar-se ao fundo da sala de aula para, sorrateiramente, abrir um livro sob o tampo da carteira para ler enquanto o professor discorria sobre um assunto do programa. O menino pobre que começou comprando livros em sebos, hoje tem uma biblioteca inestimável. Tem, sobretudo, o respeito dos leitores de alto coturno. Sobrepôs ao empresário a imagem do grande conhecedor de livros, em seu amoroso possuir.

Assisti na televisão a uma rápida reportagem, em que a imagem de Mindlin era emoldurada pelos volumes de sua biblioteca. Em ordem, em brilho, em cor. Em sua face tranqüila, envelhecida pelo tempo e enriquecida pelos livros, uma lição de afeto, de encanto, de solidária e produtiva convivência com sua biblioteca. Andando entre as estantes, a repórter parecia receber a energia e a sacralidade do ambiente. Falava calma e suavemente, como a temer que um ruído mais forte desarranjasse as estantes, fizesse ruir a ordem tranqüila, governada pelo mais novo imortal.

Em poucas horas, no entanto, a visão da biblioteca se alterou em meu cotidiano. Na vida real, no convívio ao rés-do-chão, na trincheira da guerra contra a ignorância, rufam os tambores do desrespeito e da prepotência dos sem caráter. Falava-se numa roda de conversa entre bibliotecários e professores da biblioteca comunitária da universidade. Nela, come-se, dorme-se, fala-se aos brados, livros são rasurados, amputados, desvestidos, estripados. A restauração não é mais uma arte: é um pronto-socorro, a sala de cirurgia de um hospital que atende feridos de guerra. Objeto descartável do consumo, matéria a caminho do lixo, o livro está na biblioteca para ser, já com o primeiro usuário, um hipertexto: pronto a receber a colaboração do leitor, com riscos, rabiscos, anotações a caneta, cortes com estilete, manchas de gordura, restos de lanches fast food, carimbos da ignorância não exclusivamente intelectual. Marcas do descaso com os outros usuários, do apagamento da noção de comunidade, da filosofia do ?eu mereço?. E somente eu.

Mais trágicos e tristes são os livros desaparecidos. Seqüestrados sob casacos criminosos, conduzidos por mãos larápias, serão escondidos em espaços de uso egocêntrico, ou entregues por trinta dinheiros.

Sabia, leitor, que há aproximadamente 500 municípios brasileiros sem sequer uma biblioteca pública? Num país de poucos dinheiros, e de muitos analfabetos?

Roubar livros, destruí-los, estar na biblioteca como se ela fosse um lugar de piquenique e de reuniões festivas combina com nossos índices de desenvolvimento, de taxa de analfabetos absolutos e alfabetizados funcionais, de país de pouca memória e de muita violência, não é mesmo?

Drummond de novo: ?Tudo que sei é ela que me ensina / O que saberei, o que não saberei / nunca, / está na Biblioteca em verde murmúrio?.

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