O lado obscuro da natureza humana

Cenas de tapas, socos, pontapés ou apenas palavras e pensamentos que arrancam lágrimas ou despertam raiva. Se isso é familiar, com certeza não se trata apenas do mundo virtual, mas tem a ver com o cotidiano, até mesmo dentro de casa, envolvendo família, amigos ou companheiros de trabalho. Segundo especialistas, a agressividade pode existir, sim, dentro do ser humano, mas sua manifestação tem a ver com as condições a que estamos submetidos e os comportamentos com os quais somos condicionados a reagir diante de determinadas situações.

Se você se identifica com essa situação, aqui vai um conselho: saiba o que existe por trás da agressividade individual e social a que está submetido. A partir daí, uma série de avaliações a respeito do termo surgem. A primeira delas, abordada pelo psiquiatra e presidente da Sociedade Paranaense de Psiquiatria, Osmar Ratzke, diz respeito a algo inerente ao homem, mas que pode ser controlado dentro dos termos da sociedade. ?Ser agressivo faz parte da natureza humana. Na verdade, é até uma estratégia de sobrevivência, faz parte da perpetuação da espécie. Mas nós somos civilizados, temos de tomar cuidado para não extravasar?, explica.

Surgem, então, os fatores que contribuem para esse risco. ?Um deles é a frustração, que pode ser de natureza social, econômica ou pessoal?.

O psiquiatra avalia que, até certo ponto, o comportamento agressivo é socialmente aceitável, ou seja, dentro de limites que não cheguem a ferir a integridade humana além do que podemos permitir. São as brigas em família, discussão com amigos e, dependendo da intensidade, até uma agressão física – situações que com o tempo se apagam e passíveis de perdão. ?Além dessa linha existem as doenças, desde transtornos de personalidade até psicoses, que podem desencadear crises de agressividade?, delimita.

Em um extremo, essa agressividade pode se refletir contra a própria pessoa – um suicida – ou contra o outro – homicida. ?Mas é importante observar que existe um mito sobre o doente mental como uma pessoa agressiva. O mais comum, na verdade, é que projetem a agressividade mais para dentro que para fora. Quando isso acontece, embora não seja freqüente, acaba chamando a atenção porque vira notícia?, diferencia.

Afora a ligação com o mundo do crime, existe o comportamento agressivo como quesito de sobrevivência na selva urbana. Enquanto do ponto de vista psiquiátrico são poucas as pessoas propensas a desenvolver atos extremos, é preciso lembrar que todos nós estamos sujeitos a ter comportamentos agressivos diante de certas situações. ?Para nos defendermos, por exemplo, usamos esse recurso da natureza; ou então, você pode precisar de um certo grau de agressividade para conseguir um emprego. Claro que se for agressivo demais, jamais conseguirá a vaga. Portanto, o equilíbrio é o ideal?, resume Ratzke.

Nesse aspecto se encaixam também as brigas em família, principal receptora do estresse do dia-a-dia. ?O nosso limiar para as frustrações é variável, cada um suporta até certo ponto. Mas, em família, o freio para segurar o comportamento agressivo cai normalmente por conta da intimidade. Agora, se a agressão chega a machucar o outro, é sinal que a estruturação da família vai mal?, conclui.

Termo está ligado a grupos sociais

Além dos fatores internos, o meio social também define se uma pessoa se tornará agressiva para além do necessário, pendendo para a violência. É o que acredita o sociólogo Pedro Bodê, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (UFPR). ?A agressividade permeia boa parte de nossas relações sociais, entre adultos e jovens, homens e mulheres; isso diz respeito a uma questão sócio-histórica?, define.

Indo ao termo da agressividade não como mecanismo de defesa, mas como forma de violência, o sociólogo identifica três tipos diferentes no brasileiro. A primeira, que atinge de maneira intensa os pobres, acaba sendo vista como natural pela população. ?Ninguém encara como violência mesmo a falta de acesso aos bens mais básicos. Quando achamos que as pessoas pobres são mais perigosas, é porque associamos falta de recursos à criminalidade?, esclarece.

As outras formas de violência estão fortemente relacionadas à parcela populacional de negros e às mulheres. ?Até mesmo no preconceito, que aparece um pouco mais velado. Mas nota-se que violência do Estado por parte da polícia contra os afrodescendentes é intensa, bem como as mulheres são vítimas de muita violência por parte dos homens?, expõe.

E, tal como os valores sociais, a agressividade/violência também acaba sendo transmitida pelas gerações. ?Como nossa sociedade é muito violenta, as pessoas tendem a se tornar agressivas para além daquele ponto necessário ou aceitável. Isso tem a ver com a origem da nossa sociedade, que é escravocrata, latifundiária, tendendo a ser muito violenta contra os grupos mais pobres, negros, mulheres, jovens.?

Bodê finaliza com uma crítica: ?O que chamamos de civilização são as sociedades que conseguem controlar seu ímpeto físico, mas não é isso que temos vivido hoje. Alguns grupos sociais são mais vitimizados?, declara. (LM)

Relação com o âmbito familiar

O comportamento violento ou agressivo depende, de acordo com a psicóloga Paula Gomide, de como a criança percebe as reações dos pais diante das etapas de seu desenvolvimento. ?Quando o bebê nasce, os pais são os mediadores em relação ao meio ambiente. Quando sorri e os pais sorriem, quando chora e a mãe o coloca no colo, o bebê vê que a figura materna entende suas necessidades e desenvolve o afeto em relação aos pais. Estes vão protegendo-o das coisas ruins, alimentam, enfim, fazem o cuidado. Mas, se o bebê receber, no lugar do afeto, espancamento, em vez da atenção, negligência, ou abusos físicos e psicológicos, terá desenvolvimento violento.?

É o que a profissional constatou ao estudar o comportamento de menores infratores como docente da Universidade Federal do Paraná (UFPR). ?Eles entram nos grupos marginais porque lá têm a proteção que não encontram na primeira infância. Sabem que é algo imediatista, que amanhã mesmo podem estar mortos, mas os parâmetros para eles são diferentes, já que não têm nada a perder?, explica.

Educação

Para explicar as diferenças nas brigas familiares, ela usa de uma palavra: educação. ?Os pais vão mostrando o que é ou não permitido em uma convivência saudável. No grupo social civilizado, ensina-se a resolução dos problemas. Se o pai xinga no trânsito, por exemplo, dá o modelo de sua resolução?, garante. (LM)

Autoconhecimento traz benefícios

Para o escritor Roberto Saul, autor do livro recém-lançado O divino jogo do ser, da editora Alaúde, a agressividade é resultado de um autoconhecimento deficitário, fazendo com que, diante dos obstáculos, as pessoas encontrem vilões externos para responsabilizar por seus sofrimentos.

Ele raciocina através da lógica das virtudes internas e externas. Roberto Saul acredita que a felicidade, o amor, o equilíbrio ou a paz que se encontram externamente são, na verdade, reflexos do que há dentro do ser humano. ?De fato, o mundo externo proporciona momentos de felicidade, de alegria, euforia, mas são transitórios e efêmeros. Não que isso seja ruim, porque estamos dentro dessa dimensão material e temos de administrá-la da melhor maneira possível para termos qualidade de vida satisfatória. Mas esses momentos externos de felicidade, que eu chamo de caminhos alternativos, na verdade apenas acionam algo que dentro de você já existe?, explica.

O que isso tem a ver com a agressividade, segundo o escritor, é que muita gente esquece da característica temporária desses eventos e acaba se apegando demais a eles. ?Cria-se dependência nos relacionamentos, ao emprego, mas as pessoas e as situações mudam.?

Diante da frustração e das perdas, as pessoas que não têm vivência do autoconhecimento acabam culpando o transitório pela passagem de suas expectativas, que deveriam na realidade ser projetadas interiormente. ?Daí surge essa agressividade, que pode ser apenas verbal, pelo pensamento ou física. Ela se reflete mais na própria pessoa agressiva, mas também depende do autoconhecimento do agredido aceitar a agressividade ou não?, exemplifica. (LM)

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