Língua pátria, mátria minha

Quando presenciamos, na TV, uma “defesa” exacerbada da língua, em propagandas (ou melhor, intervalos comerciais), a ponto de aparecerem artistas fazendo comentários sobre o “certo” e o “errado”, fica-nos a indignação pela hipocrisia com que o tema é tratado.

Sabe-se que a língua é um fenômeno de interação social, e diante deste fato tem variedades: regionais, culturais, históricas, sociais… variedades estas, que não são levadas em consideração quando o assunto é certo e errado. Afinal o que é certo e errado em língua?

Certo é aquilo que é ditado como norma em livros “didáticos” ou em gramáticas? Por quê? Porque é aí que se encontra a língua mãe? A língua pátria? Porque a língua dita padrão (supostamente encontrada na gramática) é única e qualquer desvio dela é incorreção? E a língua falada nas ruas é, na maioria das vezes, desvio da norma? Que norma é essa?

Temos que repensar muito os conceitos que nos são passados pela TV, mas venho em especial falar deste do qual, como professora de “língua real”, e consciente de que não basta fingir-se responsável pela língua, como um defensor de algo que parece fechado em si mesmo ou ainda algo perene, imutável; e não o é, que estamos ensinando algo sobre língua e comunicação.

Desde que entramos na escola nos ensinam que não conhecemos a nossa língua, que fazemos na maioria das vezes utilização incorreta desta língua, que muitos acreditam estar guardada em gramáticas (livros “mágicos” que contêm a verdadeira língua a ser utilizada sempre em qualquer situação e com qualquer pessoa, para que possamos nos comunicar corretamente). Portanto, qualquer desvio das normas impostas pela “gramática” é erro e não atinge o correto objetivo de comunicação. Assim, são pouquíssimos os felizardos a dominarem esta língua, a maioria dos “pobres mortais” não sabe se comunicar em sua própria língua, já que não domina a dita língua da gramática.

Entretanto, não nos é explicado (talvez intencionalmente, mas isso já é outro assunto, que “dá panos pra mangas, camisas, calças…”) que o princípio da comunicação é fazer-se entender. E que em determinados momentos, com determinadas pessoas, e conforme a intenção que se tem é que se faz escolhas entre as várias modalidades que a língua oferece. Que a língua não é apenas uma modalidade fechada em si mesma (a dita modalidade padrão), e sim uma gama de variedades que se apresentam para e por seus falantes, que são os reais conhecedores desta língua pois são os que a utilizam.

Alguns leitores devem estar se perguntando, neste momento, lá vem aquele “papo” de que tudo o que se fala está certo, que não há erro. Sim, não há erro, o que pode haver são escolhas incorretas em determinados momentos, nos quais se pretendia algo e não se conseguiu devido à utilização de uma modalidade inadequada. Digamos que este artigo fosse escrito em uma outra modalidade, como por exemplo, linguagem técnica, ou ainda jurídica, qual seria o resultado no momento da leitura? O objetivo que é fazer entender esse determinado assunto não seria alcançado, como o pretendido, que é principalmente atingir professores em geral, e mais intimamente professores de Língua Portuguesa. Não que esses não compreendam algum tipo específico de “língua” técnica, ou jurídica, mas a intenção é ser adequadamente entendido, para ser aceito e conseguir convencer de algo.

Devemos, portanto, conhecer nossa língua o mais possível e esse conhecimento infelizmente (talvez não tão infelizmente assim, porque nos obriga a pensar sobre quando e como usar nossa capacidade comunicativa) não está guardado em livros “mágicos” (capazes de nos ditar regras de perfeita comunicação), está, sim, em textos dos mais variados e na ação comunicativa dos seus falantes. Conhecer a língua é conhecer-se como quem a utiliza e faz dela sua parceira em uma prática constante que é a comunicação. Respeitar as diversas modalidades é dar-se ao direito de conhecer os falantes desta língua e abrir-se a um aprendizado real, possível e fantástico de saberes, idéias, culturas das mais variadas.

Quando pesquisamos a fundo as diversas modalidades da língua percebemos que em cada uma delas existem mecanismos próprios que conseguem em determinados momentos comunicar com maior proximidade do que se deseja e atingir com maior facilidade o ouvinte ou leitor que se quer atingir.

Quando os falantes de uma língua percebem esses mecanismos, percebem conseqüentemente as utilizações que se fazem deles para envolver, iludir (enganar) e atingir os mais diferentes objetivos.

Desta forma, o que poderia ser feito, também pela TV (ao invés de fingir preocupação com educação da língua, quando dita normas como se estivesse fornecendo dicas preciosas), é desmistificar “língua pátria” e oportunizar aos seus telespectadores contato com as diversas variedades, dando-nos a felicidade de ouvir e ver culturas do país inteiro e falas das mais diversas localidades, sem a maquiagem de sotaques criados em laboratórios. E não incultar ainda mais o conceito de desconhecimento da língua, por seus falantes.

Rosana de Fátima Silveira Jammal

é professora de português, especialista em lingüística.

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