João Paulo II: o reconhecimento da família humana

Nas últimas seis semanas tomamos contato com dezenas de sínteses biográficas, comentários e análises em torno da figura do papa João Paulo II. Incontestável sua liderança espiritual sobre mais de um bilhão de seguidores. Destaque para o papel preponderantemente político ao religioso, rompendo fronteiras geográficas, ideológicas e da fé, influenciando na queda do comunismo europeu, a admoestação aos conflitos armados e o clamor por mais justiça social. Impossível ignorar também as idéias conservadoras sobre diversos pontos na área doutrinária, ratificando a posição firme de sua igreja contra o uso de contraceptivos e o aborto, a homossexualidade, a abolição do celibato, a manutenção da mulher longe de certas práticas litúrgicas e a prevenção contra os avanços científicos na área médica. Temas polêmicos, posturas questionáveis capazes de desagradar extensos setores da milenar instituição e fomentar ainda mais a adesão sem prática dos fiéis.

Mas não nos cabe lançar julgamentos sobre tais pontos que são da alçada exclusiva do próprio Catolicismo. Preferimos ficar com o pensamento de abertura do falecido papa em relação às outras crenças, não-cristãs inclusive, e o seu exemplo pessoal. Em momento algum, apesar do deliberado esforço de se utilizar dos modernos recursos da mídia para disseminar sua imagem, pôde-se duvidar das intenções em relação às pessoas que professam outras crenças religiosas. Estendeu a mão, e quase sempre foi correspondido, a judeus, muçulmanos, ortodoxos, protestantes. Talvez essa aproximação pudesse ser mais efetiva com as religiões orientais, mas o fato é que o papa peregrino, inteligente, carismático e humilde buscou o ecumenismo em todos os 120 países visitados ou mesmo em suas falas vaticanas.

Em certa ocasião, o orador espírita carioca José Raul Teixeira comparou a verdade a um grande espelho quebrado e afirmou que o erro das religiões é reivindicar cada uma para si a posse de todo ele. O Espiritismo possui somente um pedaço deste espelho e como tal respeita todas as outras maneiras de pensar e interpretar o mundo e as leis divinas. Mais que isso, deve ser estimulado o processo alteritário de aceitação do próximo com todas as suas peculiaridades físicas, intelectuais, sociais, morais e espirituais. Respeitar e aprender com as diferenças dos outros, sem indiferença aos outros. Boa fórmula para a implantação da legítima fraternidade entre os homens.

Alguns trechos exarados das obras basilares da Doutrina Espírita, a chamada codificação kardequiana, a partir da iniciativa dos seres espirituais reveladores, podem dar uma dimensão de seus objetivos. Em Obras Póstumas, uma comunicação mediúnica informa que ?O Espiritismo tornar-se-á a base de todas as crenças, o ponto de apoio de todas as instituições… porque destrói os maiores obstáculos à renovação que são a incredulidade e o fanatismo?.

Na questão 628 de O Livro dos Espíritos, acrescentam (…) para o estudioso, não há nenhum sistema filosófico antigo, nenhuma tradição, nenhuma religião a negligenciar porque todos contêm os germes das grandes verdades?. Ainda em Obras Póstumas: ?Não procura demover ninguém de suas convicções religiosas. Não se dirige àqueles que possuem uma fé que os satisfaça, mas àqueles que não estando satisfeitos… procuram algo melhor?. Também em A Gênese, cap. XVIII, item 25, declara-se que não é o Espiritismo que cria a renovação social, é a maturidade da humanidade que faz de tal renovação uma necessidade?. Destacam, em O Livro dos Espíritos, questões 917 e 685, a necessidade da educação, ?não a que simplesmente faz homens instruídos, mas aquela que faz homens de bem pela arte de formar caracteres que é o conjunto de hábitos adquiridos?. Novamente em Obras Póstumas, fornecem o segredo: tornar a vida futura tão positiva quanto a presente que é sua continuação, que se a perceba e compreenda, que se possa, por força de expressão, tocá-la.

Como se vê, o Espiritismo reconhece-se não como o dono da verdade, mas possuidor de parte dela, um dentre vários caminhos do processo de desenvolvimento do senso moral do ser humano e que desembocará na vivência em mais alto grau da alteridade fraterna. O Espiritismo nada impõe ou proíbe. Somente oferece uma proposta de vida que já provou ser capaz de proporcionar um bem-estar íntimo dificilmente encontrável em outro lugar. Pelos esclarecimentos que presta sobre a origem, natureza e destino da alma e pelos consolos que espalha, torna-se uma opção viável a ser examinada, ainda que respeitados os diferentes graus evolutivos entre os indivíduos e principalmente o livre-arbítrio de cada um se autodeterminar.

Justa, pois, a homenagem à personalidade do papa polonês pelo muito que realizou ao longo de seus 26 anos de pontificado. Abstração feita aos excessivos rituais que cercaram os funerais, mas em grande parte por força deles, o mundo quedou-se comovido para reverenciar um homem especial e missionário que, a despeito do próprio dogma de infalibilidade, mostrou-se sempre humano e não divino, beijando o chão, indo ao encontro de velhos e doentes e pedindo perdão por erros do passado de sua instituição. Por isso tudo, agora talvez esteja bem acima do humano e mais próximo do divino.

Colaboração da Associação de Divulgadores do Espiritismo do Paraná – ADE-PR.

e-mail: adepr@adepr.com.br

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