Feridas que só os remédios não curam

Sem escolher condições sociais ou motivações relevantes, os maus tratos físicos e psicológicos sofridos por crianças e adolescentes nos lares brasileiros caracterizam-se em sua maioria por agressões e palavras traumáticas e acarretam em grandes prejuízos para o desenvolvimento pessoal e social. Apesar de não estar isolada, a agressão física é ainda a que chama mais a atenção, provocando cicatrizes que vão muito além das que ficam na pele das vítimas.

A violência contra a criança acontece geralmente dentro de casa, enquanto os agressores quase sempre são os próprios pais. "Pelos dados de Curitiba, só 3% dos casos se referem a pessoas desconhecidas. Isso confirma as estatísticas internacionais", analisa a pediatra Luci Pfeiffer, que preside o Departamento de Segurança da Criança e Adolescente da Sociedade Paranaense de Pediatria (SPP). A violência em casa atinge principalmente crianças abaixo de 12 anos e não se limita a agressões físicas. "O dano físico é o que mais aparece, mas o psicológico seguramente é mais intenso, porque pode acompanhar outros tipos de maus tratos e ainda vir de forma isolada", acredita a médica.

A reação das crianças geralmente engloba sentimentos de culpa e retração, bem como medo e, em outro extremo, comportamentos arredios e agressividade. Já as justificativas dos agressores tentam encobrir verdadeiras atrocidades, que refletem instintos de punição exacerbados. "Entre as marcas mais comuns estão as equimoses (vermelhões) e hematomas, o que não exclui grande número de agressões bem mais sérias, como queimaduras feitas com cigarro e ferro de passar roupa", exemplifica a médica. "São comuns também casos de pais que punem os filhos que fazem xixi na cama colocando-os em uma bacia de água quente, por exemplo."

Fraturas e lesões cerebrais também são comuns, envolvendo grande risco de resultar em morte, principalmente quando a agressão é contra bebês. "Entre as crianças maiores, é comum aparecerem com lesões abdominais, que podem causar rupturas de víceras, como fígado, baço e pâncreas", lembra Luci.

Traumas

Para a médica, qualquer forma de violência física (por deixar marcas) e nem mesmo as palmadas de repreensão são aconselhadas. "Nos casos em que os pais as justificam como forma de educação, ainda é possível mudar a atitude orientando-os." A pediatra explica que o condicionamento adquirido pela dor na criança dá apenas resultados imediatos por despertar nela o medo, mas não resolve questões educacionais. "O que ensina limites é o ‘não’ que é dado de forma constante para coisas importantes, e que não deve virar ‘sim’ com o choro ou a manha da criança", acredita. O perigo, segundo Luci, é que a atitude de punir com dor pode tomar proporções mais graves quando as surras se repetem ou se transformam em verdadeiros espancamentos. "Nos casos mais sérios, podem envolver até risco de vida para a criança e, do ponto de vista psicológico, certamente trarão traumas e desvios de personalidade que se estenderão pelo resto da vida."

É o que avalia a psicóloga Mônica Giacomini, à frente da organização do V Congresso da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar, marcado para setembro, em São Paulo, e que dará enfoque ao tema. "A vivência de maus tratos pode até ficar no inconsciente, mas vai permear a relação da criança com a família e a sociedade. Também há possibilidade de desenvolver fobias, problemas sérios de adaptabilidade social e dificuldade em se relacionar e confiar no outro." Segundo a psicóloga, uma situação inversa também pode acontecer, evidenciando extrema agressividade e repetição do comportamento que deu origem à situação traumática nas relações futuras. "O contraste depende como a criança absorve o que aconteceu. Quando os agressores são os pais é ainda pior, podendo gerar culpabilidade para livrá-los, poupando a figura idealizada. A criança questiona o que está fazendo para merecer aquilo porque, independente de tudo, ela ama os pais".

 Negligência com bebê destrói a personalidade

Na medicina legal há meios de distinguir lesões acidentais das provocadas. O professor de Medicina Legal Paulo Alarcon explica que alguns machucados podem até deixar dúvidas, mas geralmente, para o profissional, as diferenças são evidentes. "No caso das queimaduras com água quente, mecanismos naturais de defesa fazem com que a criança proteja a mão, evitando que ela seja inteira queimada." Com o ferro de passar roupa, manchas de uma queimadura acidental também divergem. "Os reflexos não permitiriam que o objeto ficasse por alguns segundos sobre a pele e as marcas de uma queimadura acidental não evidenciam a forma do objeto com nitidez", cita.

Lesões na parte interna das coxas justificadas como tombos também são suspeitas, já que, ao cair no chão, raramente uma pessoa atingiria a área. "Temos mecanismos naturais de defesa, o que nos leva a proteger o corpo com as mãos ou os cotovelos e joelhos", afirma, relatando que deve-se desconfiar também da testa machucada com o nariz intacto.

"Já no caso dos hematomas causados por surras com pedaços de madeira, a marca é facilmente reconhecível, com duas manchas paralelas vermelhas e uma esbranquiçada no meio, já que só os vasos laterais se rompem, diferente de uma batida na ponta do armário, por exemplo, que causa uma mancha uniforme", indica o profissional.

Agressores podem responder cível e criminalmente

Maltratar crianças envolve diversas repercussões, entre elas, do ponto de vista legal. Os agressores podem ser processados tanto cível quanto criminalmente, dependendo da gravidade do caso. Mas nem sempre é fácil responsabilizá-los pela agressão, já que tem que se partir de denúncias para isso. "Na maiorias das vezes, elas partem de vizinhos, professores, pessoas do convívio do menor. Eles verificam que algo está estranho, até porque muitas vezes essas marcas não são aparentes, mas mudam o comportamento da criança", avalia o advogado Paulo Alarcon, professor de Medicina Legal.

Se a denúncia existe – podendo vir de laudos de equipes médicas em hospitais ou unidades de saúde também, como acontece em boa parte dos casos -, o passo seguinte é o encaminhamento ao conselho tutelar. Dependendo da lesão, uma perícia é requisitada ao Instituto Médico Legal (IML) e o resultado encaminhado a uma delegacia. "Com o inquérito, o Ministério Público age, levando o caso às varas da infância e juventude", complementa a advogada Marta Tonin, representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) junto ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

De acordo com Marta, o juiz responsável procura alguém da família – que não os pais, caso sejam estes os agressores – para cuidar da criança. Caso não haja, a criança é destinada a um abrigo. "Daí parte-se para juízo e, se as provas se confirmarem, pode ocorrer cassação do poder familiar, com os pais perdendo a guarda da criança", explica. Segundo a advogada, os pais podem ser responsabilizados tanto por maus tratos físicos quanto psicológicos ou morais.

Criminalmente, os agressores também podem ser punidos, de acordo com o artigo 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente. "A pena por maus tratos – ou tortura, que é como a lei se refere – é reclusão de um a cinco anos. Se resultar em lesão corporal grave, dois a oito anos; gravíssima, de quatro a doze anos; e se resultar em morte, os agressores podem pegar de 15 a 30 anos de prisão", conclui a advogada.

Programa da Prefeitura de Curitiba é referência

Curitiba conta com um programa que é referência nacional na identificação e cuidado de diversos tipos de danos contra crianças e adolescentes. A Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência é resultado de parceria entre diversos órgãos e entidades municipais e estaduais, contando com representantes em todas as secretarias municipais e coordenações nas regionais de saúde espalhadas pelo Estado.

Segundo Vera Lídia Oliveira, coordenadora municipal da rede, mais de seis mil profissionais já foram capacitados dentro do programa para reconhecer sinais de alerta que indiquem todos os tipos de maus tratos. "Tanto hospitais como unidades de saúde notificam os casos e a rede do local onde a criança mora se responsabiliza pelo acompanhamento. Eles abordam a família para apoio e reflexão", explica Vera Lídia.

Só no ano passado, foram registradas pela Rede 2.219 notificações de maus tratos de ordem física, psicológica, sexual, por negligência e abandono, das quais 1.986 eram de moradores de Curitiba e Região Metropolitana.

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