Catar papel, modo de sobreviver

carrinheiro030905.jpgEles estão presentes em toda a cidade, mas muitos preferem fingir que eles simplesmente não existem. Entretanto, os catadores de papel com seus carrinhos lotados de material reciclável já fazem parte da paisagem urbana, em um reflexo direto do alto índice de desemprego no Brasil.

Apesar de a profissão ser reconhecida pelo cadastro brasileiro de ocupações, não há um registro exato de quantas pessoas exercem essa função – estima-se que em Curitiba sejam 15 mil. Entretanto, em uma análise por amostragem, é unânime a versão de que ser catador de papel não é uma opção, mas um modo de sobrevivência – a renda de um catador de papel gira em torno de R$ 200 mensais e este dinheiro muitas vezes é utilizado para sustentar toda a família.

Na dura rotina, eles arrastam pesados carrinhos por calçadas irregulares, ou dividem o espaço do asfalto com os carros. Faça chuva ou faça sol, são no mínimo cinco horas percorrendo a cidade em busca de material – o que geralmente é feito durante a noite. Durante o dia, a função é separar o material recolhido para vender nos depósitos, com os quais os catadores vivem uma relação de amor e ódio.

?Se por um lado eles reconhecem que são explorados, por outro dependem dos depósitos, que emprestam o carrinho a eles e dão um espaço para eles viverem?, diz Mariuza Aparecida de Lima, uma das comandantes do Instituto Lixo e Cidadania, que luta pela mobilização da classe em busca de melhores condições de vida.

No mecanismo de trabalho, a maioria dos catadores não tem dinheiro para a aquisição do carrinho próprio. Então, procuram os depósitos para os quais entregam o material separado em troca do instrumento de trabalho e, em algumas vezes, um espaço para viver – há famílias inteiras dividindo espaço entre o lixo nesses locais.

?Conseguimos, através de doações, conceder alguns carrinhos. Mas o problema da moradia é muito difícil de ser resolvido?, diz Mariuza, referindo-se ao trabalho do Centro de Formação do Catador, que funciona na Rua Doutor Salvador de Maio, 25, no Jardim Botânico.

Quem não vive nos depósitos, acaba tendo que se submeter ao preço pago por eles pelo material separado. Para se ter uma idéia, um quilo de alumínio – material mais valorizado pelas empresas, custa R$ 2,90.

Ecologia

A despeito das agruras de uma vida de privações, os catadores têm o alento de ser agentes ecológicos. O trabalho árduo da coleta e separação do lixo, para posterior reciclagem. ?É o que usamos como questão de resgate social. Somos importantes para a preservação do meio ambiente e da humanidade, mesmo que haja muito preconceito e marginalização?, diz Mariuza.

No instituto, está sendo plantada uma semente de conscientização em torno deste importante papel social dos catadores, inclusive com palestras educativas, com participação efetiva do Ministério Público. ?Somos cidadãos e temos direitos como qualquer outro cidadão. Por isso, a mobilização é fundamental?.

Trabalho feito durante a noite acaba rendendo mais

O dia de trabalho da maioria dos catadores de papel começa quando muitas pessoas estão voltando aos seus respectivos lares. Terezinha Aparecida da Silva Gonçalves, casada, mãe de duas crianças, reveza com o marido Flávio as saídas em busca do lixo que vai sustentar a família.

?Trabalhamos das 17h às 23h, porque é o horário em que as pessoas e as empresas colocam o lixo para fora e podemos encher o carrinho?, diz Terezinha. Com o marido e os filhos, eles moram em uma casa alugada na Vila das Torres. Durante o dia, as crianças ficam numa creche da Prefeitura. À noite, ficam com o pai ou com a mãe, dependendo do dia. ?Poderíamos morar em algum depósito, mas dá muita mistura, tem muita gente que não presta e fica se embebedando?, diz Flávio.

Com o pouco dinheiro que juntam – cada um consegue em média R$ 200,00, eles pagam o aluguel e pelo menos alguma comida na mesa, mas asseguram que só catam papel por extrema necessidade. ?Eu vim, Guarani-açu para Curitiba em 95, em busca de emprego, mas sem estudo, pouco se consegue. Até hoje estou procurando, sem sucesso?, lamenta Terezinha.

Apesar de o marido Flávio ser um caso típico da herança profissional paterna – o pai dele já exercia essa atividade, Terezinha pensa em um futuro diferente para os filhos. ?Quero que eles estudem. Tenho consciência da importância ecológica do catador, mas isso é sobrevivência. Quero uma vida melhor para as crianças.?

A migração do campo para a cidade é muito comum entre os catadores. A propaganda em torno da capacidade de geração de empregos propalada na década de 90 provocou um êxodo rural considerável. Sem empregos suficientes para atender à demanda, a opção de muitos foi se tornar catador.

Andréia Aparecida dos Santos, mãe de três meninos, está em Curitiba há quinze anos, vinda de União da Vitória. ?Minha família já estava aqui e vim tentar a sorte. Acabei virando catadora?, diz. Este ano, ela virou voluntária do Clube Mães e hoje trabalha como artesã. ?A vida nas ruas é muito desgastante, com frio e violência. Além do esforço físico, muitas vezes não somos bem tratados e vistos como marginais.?

Doméstica

Rosely Bueno, de 42 anos, trabalhava como empregada doméstica mais saiu do mercado há três anos. Sem outra opção, adquiriu um carrinho em um depósito e começou a dura rotina, que já traz seqüelas, como dor nas costas. ?Não é uma vida fácil, mas pelo menos dá para se alimentar.? Com o primeiro grau completo, Rosely chegou a exercer a função de zeladora, mas acabou virando catadora por falta de opção. ?Continuo correndo atrás porque ninguém vive separando lixo por prazer. Ainda tenho esperanças de arrumar um emprego menos desgastante.?

Enquanto não têm outra opção, os catadores de papel lutam para ao menos melhores condições de vida para os filhos – querem-nos em creches em vez de dentro dos carrinhos, na labuta do dia-a-dia. Outra reivindicação dessa classe é o fim do caminhão do lixo que não é lixo, apontado como maior concorrente deles. ?Queremos trabalhar, só isso?, finaliza Rosely. (GR)

Estudantes fazem documentários sobre os coletores

Há dois anos, o projeto Olho Vivo, que através da Fundação Cultural promove oficinas de cinema a preços acessíveis, escolheu os catadores de papel como tema de conclusão de curso e produziram um retrato fiel da classe.

Após uma pesquisa profunda, que contou com o auxílio dos participantes do Fórum do Lixo e Cidadania, os alunos da 3.ª turma do projeto conseguiram editar o documentário Papel de Catadores, com duração de quase uma hora. Em um trabalho extremamente delicado, o filme revela o cotidiano dos catadores de papel de Curitiba, com extremos de alegria e tristeza.

?É interessante ver que alguns catadores são desiludidos com a vida, enquanto outros conseguem encontrar alegria e se sentem úteis por contribuir com a ecologia?, diz Luciano Coelho, coordenador do projeto

As gravações aconteceram em três locais de concentração alta de catadores – a Vila das Torres, a Vila Leão e o bairro Parolin, e uma coisa em comum foi constatada: as precárias condições de vida desta parcela da população. Forçados a se submeter às imposições dos donos de depósitos, que muitas vezes fornecem os carrinhos utilizados por eles, pouco sobra para a manutenção da casa e é bastante comum ver várias famílias morando no mesmo terreno. Apesar de um certo conformismo, porém, os catadores estão cada vez mais organizados em associações, que na coletividade promovem a luta por melhores condições.

?Certamente, houve uma mudança de visão de todos os participantes em relação aos catadores. Além de serem agentes ecológicos, eles são engajados e querem melhorias?, diz Luciano.

Com o documentário, o projeto Olho Vivo cumpriu mais uma etapa do compromisso de mostrar o outro lado de Curitiba, bem diferente do utilizado na propaganda política nos anos 90s, que vendia para o Brasil e para o mundo o rótulo de Cidade Ecológica. ?Nossa intenção é mostrar o lado que muitas vezes as pessoas não querem ver. Os catadores, com seus carrinhos, fazem parte desse lado discriminado, o qual as pessoas preferem fingir que não vêem.? (GR)

Cooperativa já é lei, mas ainda não funciona

No iníco dos anos 90s, quando estimativas davam conta de que o número de catadores de papel na capital girava em torno de apenas quinhentos, a Câmara de Vereadores aprovou uma lei para a criação de uma cooperativa da classe, subsidiada pela Prefeitura Municipal de Curitiba.

A idéia inicial do projeto era impedir a circulação dos carrinhos dos catadores de papel no anel central da cidade. Em contrapartida, o caminhão do lixo que não é lixo faria a coleta nessa região, comprometendo-se a reverter o capital obtido com a venda do material à cooperativa, que faria um rateio entre todos os catadores associados – hoje o material coletado pelo caminhão da Prefeitura vai diretamente para a Fundação de Ação Social (FAS).

?Seria uma forma de garantir ao menos o mínimo de renda mensal para todos os catadores. O complemento viria do trabalho realizado com a coleta em todos os outros eixos?, explica o vereador Jair Cézar (PTB), idealizador do projeto que resultou na lei, até hoje não aplicada. ?Entra gestão e sai gestão e a cooperativa não é criada. Enquanto isso, os catadores são cada vez mais explorados pelos donos de depósitos?, diz.

Conflito

Os catadores, através do Fórum Lixo e Cidadania, têm uma visão mais radical em relação ao caminhão de lixo reciclável da Prefeitura. Eles querem que ele saia de circulação, já que a idéia de converter o material coletado às associações não é adotada. ?Era o mínimo que poderia ser feito, já que eles são nossa maior concorrência?, diz Mariuza Aparecida de Lima, presidente do Instituto Lixo e Cidadania.

Em junho deste ano, no Dia da Mobilização Nacional dos Catadores, os catadores de Curitiba se reuniram na Praça Tiradentes, em frente à Catedral, para declarar guerra ao caminhão da Prefeitura e conscientizar a população de que mais do que pessoas que recolhem o lixo das ruas, eles são agentes ecológicos, já que colaboram na separação do lixo para a reciclagem. (GR)

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