Michel de Montaigne e o pedantismo

Ao tomar da pena para escrever sua obra perene, Michel de Montaigne tratou de tema deveras palpitante, atualíssimo, sem dúvida, em plena pós-modernidade(2) [ou uma evidente modernidade tardia, se se considerar o Brasil]: o pedantismo.

E o presente artigo lida justamente com tal assunto, sendo que o escrito é arrimado [principalmente] nos escritos do epicurista Montaigne e outros pensadores de nomeada.

Primeiramente, segundo o Dicionário Houaiss(3), pedante é o imodesto; é o que se exprime exibindo conhecimentos que não possui, é o que se expressa ostentando [falsa] cultura e erudição.

Pedante, em resumo, é o que ostenta erudição em seu discurso [de forma verbal ou escrita], defendendo uma “verdade” discutível. Aliás, nesse passo, Demócrito adverte que, em realidad no sabemos nada.

La verdad yace al fondo de un abismo(4). Com efeito, quem fala de um modo adequado e correto não o faz por obedecer a uma regra, mas convicção de instaurar desse modo uma eficaz relação com seus semelhantes, conforme adverte Paolo Grossi(5).

Em capítulo próprio o virtuoso estóico Montaigne combateu incisiva e profundamente – e com sabedoria peculiar -, aquilo que denominou de falsa ciência, e confessa textualmente que não consegue entender, efetivamente, como uma alma rica do conhecimento acerca de tantas coisas não se torne mais viva e que, por outro lado, um espírito “grosseiro e vulgar” possa abrigar as reflexões e opiniões dos mais excelentes espíritos que o mundo já viu(6).

De fato, talvez não exista resposta ao questionamento em um momento histórico da humanidade que bem se traduz no individualismo. E o pensador se baseou nos escritos de um dos seus grandes autores, justamente o pensador moralista estóico Lucius Anaeus Sêneca. E este filósofo textualmente afirma: querer saber mais que o necessário é uma forma de intemperança.

Não? Essa mania das artes liberais torna os homens pedantes, verbosos, importunos, satisfeitos de si mesmos, e incapazes de aprender o indispensável porque aprendem o supérfluo(7).

Com efeito, prossegue o sábio empirista Montaigne que também se tornou grande seguir do genial e formidável Plutarco(8) -, afirmando que não se pode considerar alguém mais importante simplesmente porque possui mais patrimônio que o vulgo; diz que aquele que se considera superior não está acima do comportamento deste [comum], e que na verdade os maus eruditos estão situados abaixo do comportamento comum, do vulgo.

Por outro lado, no que se refere especificamente aos grandes filósofos aqueles com notável saber -, eram, sem embargo, bem maiores nas ações diárias, e não permaneciam apenas no discurso ao vento. Noutros termos, em vez de contemplar sua manufatura, buscavam defender seu país; colocavam a imaginação acima da fortuna e do próprio mundo.

No que diz com a ciência, o moralista entende que pelo modo como somos instruídos, não é de admitir que nem os alunos nem os mestres se tornem mais inteligentes, embora se façam mais doutos nelas. Na verdade, os cuidados e a despesa de nossos pais visam apenas a nos encher a cabeça de ciência; sobre o discernimento e a virtude pouco se fala(9).

Acima de tudo, seu modo de pensar é no sentido de que se deve voltar os olhos [inexoravelmente] ao mais ponderado, pois, seria preciso perguntar quem sabe melhor, e não quem sabe mais(10).

E o ponto crucial de seu pensamento reside justamente neste aspecto: não é prudente encher a memória com a ciência, não cabendo deixar de lado o entendimento, a apreensão, do que se leu, do que se estudou etc., e o pensador manifesta seu pensar no sentido de que descabe vomitar e lançar ao vento a ciência, não raras vezes mal apreendida(11).

E esta mesma ciência [carente de entendimento e consciência], para o cético Montaigne, passa de mão em mão, com a única finalidade de ser exibida, de entreter os outros, de fazer contas como com uma moeda vã, inútil para qualquer outro uso e emprego exceto contar e lançar fichas(12).

E o pensador vai bem mais além, textualmente afirmando que qualquer outra ciência é prejudicial para quem não tem a ciência da bondade(13). É deveras, interessante notar o caso do rico romano – citado pelo filósofo francês -, que tinha ao seu redor homens [de fato] competentes e sábios em relação a todas as ciências.

Quando este romano se deparava com uma situação que determinava sua fala, transferia a palavra a um de seus homens, aquele mais indicado para a ocasião, a fim de que suprissem sua incapacidade de discursar a respeito de determinado tema.

Ele, o rico romano, ao transferir a palavra a um de seus subordinados tinha a falsa impressão de que era de sua cabeça que saíam as mais lindas e belas frases e pensamentos, assim como fazem também aqueles cuja capacidade está alojada em suas suntuosas bibliotecas(14).

E um dos pontos mais relevantes dos escritos de Montaigne é justamente quando assevera: atentamos para as opiniões e o saber dos outros, e isso é tudo. É preciso fazê-los nossos.

Parecemos exatamente alguém que, precisando de fogo, fosse pedi-lo em casa do vizinho e, encontrando um belo e grande, lá ficasse a se aquecer, sem mais lembrar-se de levar um pouco para sua própria casa. De que nos servirá ter a pança cheia de comida, se ela na for digerida? Se não se transformar dentro de nós? Se não nos fizer crescer e fortalecer?(15).

E Dênis, citado pelo pirrônico Montaigne, simplesmente zomba dos músicos que afinam suas flautas e não afinam seu comportamento; dos oradores que se aplicam em falar de justiça, não em faze-la(16).

E no que diz especificamente com a lei, os sabichões já encheram a cabeça das pessoas com leis, e no entanto ainda não compreenderam o nó da causa. Sabem a teoria de todas as coisas; procurai quem a ponha em prática(17).

O pensador simplesmente detesta aquelas pessoas com certa dificuldade em tolerar vestimentas e comportamentos externos dos semelhantes; aquelas pessoas que avaliam os homens por seus modos e por suas botas, e não por sua alma [que pode, inexoravelmente, estar tingida com o saber, com a bondade e com a benevolência].

E, voltando a Gevaerd, o pensador, com inequívoca propriedade, bem assevera que não se pode mais advogar, para o direito, o “status’ de saber autônomo e, em sim, competente, cujas categorias se firmam através da monocórdia repetição de conceitos artificiais e que s arroga uma certa vaidade em não recepcionar aportes da filosofia, antropologia, sociologia, economia ou outras disciplinas tidas por “extrajurídicas’, maldito epíteto com que se esconjura entre nós, ancestralmente, a multi e interdisciplinaridade(18), cabendo repensar a respeito da forma como se vê e, principalmente, como se aplica o direito hodiernamente, sem descuidar que as leis têm, ou deveriam ter, uma referência permanente à constituição do governo, aos costumes, ao clima, à religião, ao comércio, à situação de cada sociedade(19).

Insiste-se, então, na tese de que cabe ampliar [bem,] o campo de visão do hermeneuta em relação ao modo de produção do direito, que evidentemente não se subsume – apenas e tão-somente – à lei posta pelo Estado.

Portanto, as lições do circunspecto Michel de Montaigne (que se recusou a julgamentos definitivos [na justa medida em que era uma alma ciente da falibilidade do conhecimento do ser humano]; jamais sustentou qualquer certeza quanto a tudo o que examinava; jamais esgotou qualquer escrito seu; sempre buscou agir com prudência e bom senso e, principalmente, recusou falar em dogmatismo), lições materializadas nos Ensaios há mais de 400 [quatrocentos] anos, talvez sejam importantes em plena era pós-moderna.

Notas:

(1) GEVAERD, Jair. Responsabilidade Social, Inclusão e Sustentabilidade: Vértices Empresariais dos Direitos Fundamentais. In CANEZIN, Claudete C. [coord.] Arte Jurídica. Vol. I. Curitiba:Juruá, 2004, p. 192.

O escrito deveras denso de Gevaerd é, sem qualquer dúvida, um daqueles textos que merecem leitura e releitura acurada, considerando o grau de profundidade e extensão com que examina [dentre outros temas não menos relevantes] o mal-estar nas graduações e pós-graduações de direito.

E o mal-estar decorre justamente do fato de que a lei [e aqui o vocábulo está em sentido amplíssimo] foi realmente sacralizada, colocada em degrau bem superior em relação às demais fontes do direito, ,sendo apresentada como única e exclusiva fonte desse mesmo direito [com inequívoco ranço napoleônico. A propósito, diz Napoleão: in claris cessat interpretatio.

E tal sentença não mais tem qualquer sentido]. O direito é posto [ou melhor, imposto!] pelo Estado, exatamente tal como se nos apresenta hodiernamente (e nesse passo vale a pena ler o texto de Paolo Grossi: A Formação do Jurista e a Exigência de um Hodierno “Repensamento Epistemológico”. Curitiba:Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Vol. 40 [2004].

Tradução:Ricardo Marcelo Fonseca). O direito foi, pois, totalmente encapsulado pelo primado genérico, pela abstração rígida da lei vinda de cima para baixo, expedida pelo poder estatal. E como diz Paul-Michel Foucault, o direito é encomendado pelo detentor do poder.

Impera, ainda e em novo século -, o dogmatismo, o formalismo, o positivismo jurídico, pois, de fato, talvez seja bem mais cômodo para quem legisla e para quem, não raras vezes, deveria interpretar a lei consoante regras e princípios de cunho constitucional [e, para Grossi, os juristas abdicaram de um papel ativo. Op.cit., p. 8].

Não menos importante é a leitura de outra obra do mesmo pensador italiano: Primeira Lição Sobre Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006. Tradução: Ricardo Marcelo Fonseca.

Por outro lado, e o aspecto não pode passar incólume ao exegeta, é de se ponderar acerca do pensamento de David Hume, segundo o qual a lei [em tese] tem como objetivo o bem da humanidade, sendo imprescindível à paz social [Uma Investigação sobre os Princípios da Moral. Campinas:Editora da UNICAMP, 1995, p. 48. Tradução:José O. de A. Marques]
(2) A propósito, e neste passo específico, vale a pena ler [também] a obra The Postmodern Condition, de Jean-François Lyotard.
(3) Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 1a edição. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2162.
(4) Diógenes Laercio. Vidas de Los Filósofos Ilustres. Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 492. Traducción: Carlos García Gual.
(5) Op. cit., p. 24.
(6) Os Ensaios. Livro I. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 199-200. Tradução: Rosemary Costhek Abílio.
(7) Aprendendo a Viver. São Paulo: Martins Fontes, p. 129. Tradução do texto específico “Sobre os Estudos Liberais”: Carlos Nougué.
(8) Plutarco foi, para Montaigne, o mais importante pensador.
(9) Op. cit., p. 203.
(10) Idem, p. 203.
(11) Ibidem.
(12) Idem, p. 204.
(13) Op. cit., p. 210.
(14) Idem, p. 205.
(15) Ibidem.
(16) Op. cit., p. 206.
(17) Idem, p. 207.
(18) Op. cit., p. 191. Grifos no original.
(19) HUME, David. Op.cit., pp.54-55.

Carlos Roberto Claro é advogado; professor [adjunto I] de Direito Comercial, do Centro Universitário Curitiba [graduação]; professor na pós-graduação [lato sensu] da mesma instituição de ensino; especialista em Direito Empresarial; mestre em Direito [área de concentração: Direito Empresarial e Cidadania] pelo Unicuritiba e membro do American Bankruptcy Institute [Virginia – USA]

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