Marguerite Yourcenar & as Memórias de Adriano

Há precisamente um século, nascia Marguerite Yourcenar (1903-1986), um dos nomes maiores do romance francês. Foi a primeira mulher a ingressar, em 1980, na famosa academia francesa fundada por Richelieu e que é a matriz das principais academias do mundo, inclusive a ABL.

Penso que a significativa efeméride constitui um bom pretexto para uma visitação da obra-prima de MY, Memórias de Adriano. As páginas dessas admiráveis memórias imaginárias (ou autobiografia) do grande imperador começam por seduzir e deslumbrar o leitor em função da excepcional qualidade da linguagem literária, da escrita, do estilo, feito de mármores de Carrara e cristais da Boêmia.

A rigor, o romance é um longo poema em prosa – mais do que simples prosa poética. Nesse aspecto, rivaliza com os arquétipos da prosa francesa, Stendhal e Flaubert, Gide e Proust, Malraux e Camus. Rivaliza apenas? Talvez os supere.

Uma simples frase colhida a vôo de pássaro, na textualidade cantante das Memórias, será suficiente para nos dar a medida do ostinato rigore da prosa da romancista: “Comme le voyageur qui navigue entre les iles de l?Archipel voi la buée lumineuse se lever vers le soir, et découvre peu à peu la ligne du rivage, je commence à apercevoir le profil de ma mort”. Traduzo: “Como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago vê a bruma luminosa levantar-se à tarde, e descobre, pouco a pouco, a linha do litoral, começo a me aperceber do perfil da minha morte”. Note-se como a sonoridade e elegância da língua de Pessoa e Drummond nada ficam a dever ao idioma de Valéry e Saint-John Perse.

A prosa de MY é tensa, densa, intensa, lúdica, emblemática, prenhe de vida, rica de colorido, grávida de música. E mais: de lirismo existencial, da reflexão filosófica, de transcendência metafísica, de força poética. Por isso ela galvaniza o leitor. Prendo-o, acorrenta-o, magnetiza-o, arrasta-o com a sua magia verbal irresistível, numa espécie de volúpia sensorial.

Todavia, o extraordinário romance não vale apenas pela forma impecável, pela superestrutura estilística, pela implacável cintilação estética – e estésica. Vale mais ainda, quiçá, pela tessitura narratológica, pela precisão histórica, pela densidade psicológica. Em suma: pela infra-estrutura significante, pela matéria-prima ficcional (ainda que “memorialística??). Nesses diversos fatores, conjugados, interpenetrados, reside a grandeza himalaica da obra. E tudo isso confere ao romance adrianino a condição de livro verdadeiramente único, fundamental.

Iluminura, óleo, água-forte, ou melhor, painel grandioso, mural ciclópico, o romance de MY pinta, esculpe e radiografa um homem verdadeiramente grande. Não tanto pela sua condição imperial, mas pela dimensão humana – e humanística – da sua figura histórica.

MY não se limita nem se contenta em evocar, recuperar, reinventar um dado segmento da história. Traz esse tempo até nós. Faz-nos contemporâneo dele – ou torna-o nosso contemporâneo.

A romancista, mais do que delinear os contornos de uma figura ilustre, exumar uma efígie enferrujada ou a múmia petrificada dentro de um sarcófago dourado, ressuscita, faz reviver o imperador, aqui e agora. Isso através de uma escavação arqueológica sibilina, minuciosa.

Espécie de confissão autobiográfica, diálogo com a posteridade, a narrativa de MY flui no espaço e no tempo, a um só tempo madura de silêncio e grávida de música das esferas. A sua linfa verbal é simultaneamente fonte de Rilke, rio tranqüilo de Alberto Caeiro, lago adormecido de Lamartine e mar absoluto de Saint-John Perse.

Odisséia psicológica, ilíada espiritual, Memórias de Adriano é mais do que a história de uma vida, na sua exemplaridade intrínseca, com suas grandezas e misérias, luzes genesíacas e sombras quase apocalípticas. É sobretudo uma reflexão serena, extremamente lúcida, sobre o destino do homem. Sobre a vida e a morte. Sobre o mistério insondável daquela finitude existencial dissecada por Unamuno.

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