Manifestação do Ministério Público após a Resposta à Acusação, irregularidade ou nulidade?

Em função das garantias do contraditório e da ampla defesa, bem como do devido processo legal, próprios do sistema acusatório, é pacífico no processo penal dos Estados Democráticos que a defesa deve sempre falar após a acusação. Não é diferente na fase de recebimento da denúncia.

No entanto, após a apresentação de resposta à acusação por parte dos réus, que garante a possibilidade de análise de mérito e absolvição sumária, tem sido bastante comum nos foros criminais brasileiros a abertura de vista novamente ao Parquet para analisar a argumentação defensiva.

Nessas manifestações, não raro o Ministério Público, ao conhecer os argumentos que foram entregues, às vezes ingenuamente, pela defesa, realiza amplo e verdadeiro libelo em favor da denúncia já ofertada. Tal situação viola diretamente o artigo 5º, LIV e LV, da Constituição da República, pois inverte o consagrado direito da defesa em ter sempre a última palavra.

A acusação, quando oferece a denúncia, já manifesta os motivos pelos quais entende deva ser recebida em face das informações que instruem o processo.

A resposta à acusação é o último ato desta importante fase em que se decide pelo pleno recebimento da exordial, sendo facultado à defesa “arguir preliminares e alegar tudo o que interessa a sua defesa, oferecer documentos e justificações“, conforme artigo 396-A do CPP.

É o procedimento comum ordinário: após a apresentação da resposta à acusação, cumpre ao juiz analisar de imediato a possibilidade, no mérito da causa, inclusive, de absolvição sumária do acusado na forma do artigo 397 do CPP. Não estando verificada nenhuma das preliminares e/ou das hipóteses de absolvição sumária, o processo deve seguir com a regular instrução.

A réplica do acusador à resposta escrita do réu não é prevista no rito ordinário, e nem poderia ser, já que inverte a lógica acusatória, bem como da estrita interpretação, dentre outros, dos artigos 400 e 403 do CPP.

Inversão que ocorre somente no procedimento especial do Júri, em que há previsão expressa no artigo 409 do CPP.

A única hipótese em que tal manifestação seria admissível, sob o ponto de vista principiológico, seria na juntada de justificações ou documentos pela defesa, situação em que as provas apresentadas constituem antecipação da instrução e, somente por isso, devem ser apreciadas pelo órgão acusador. Ainda assim, mantendo-se a lógica do sistema, diante de um novo pronunciamento do Parquet, deve falar a defesa por último.

O rito processual é previamente estabelecido pelo legislador como meio de garantia do devido processo legal e, em decorrência lógica, evita que as regras do jogo sejam alteradas a qualquer momento com o processo em andamento.

Nada justifica, em situação normal, a alteração do rito processual previamente estabelecido no CPP. Apresentada a resposta à acusação com base no mesmo material probatório pelo qual o Ministério Público ofereceu denúncia, impõe-se a análise da mesma pelo magistrado, sendo vedado abrir vistas da defesa ao órgão acusador, sob pena de nulidade processual.

Os Tribunais, ao discutir a matéria, vêm adotando posições contraditórias. Alguns, na linha do aqui dito, estão declarando a nulidade do processo até o momento da resposta à acusação vez que a violação injustificada do rito processual acarreta lesão ao direito de defesa, independentemente de qualquer demonstração real de prejuízo processual. Ao nosso ver, tais decisões são acertadas, pois o rito processual já é estabelecido na ordem em que está, pois há uma clara presunção legal de que a alteração injustificada dessa ordem causa danos a defesa.[i]

De outro lado, na linha do recente precedente do STF (HC 105.739 Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Dje 28.02.2012.)[ii], vem se entendendo que a abertura de vistas ao Ministério Público não acarretaria nulidade vez que o ato de resposta a acusação estaria em momento processual peculiar, diferente, por exemplo, da defesa preliminar como nas Leis 9.099/95, 11.343/06, 8.038/90, dentre outros ritos especiais, bem como dos memoriais finais que precedem a sentença. Por isso, segundo o ministro relator, o conhecimento da resposta ao Ministério Público nesse momento consagraria o próprio contraditório[iii].

Outros[iv] entendem ainda, que tal medida apesar de inadequada, configuraria mero error in procedendo, incapaz de acarretar nulidade vez que na maior parte das vezes tal manifestação não acarretaria prejuízo a defesa devendo prevalecer o primado do pas de nullité sans grief, recepcionado pelo artigo 563 do CPP.

Quanto aos dois respeitáveis entendimentos brevemente esgrimidos acima, importante fazer também breves considerações. Entendemos, s.m.j., que a decisão proferida pela Suprema Corte, talvez tenha desconsiderado uma reflexão importante. Isso porque, se é verdade que inovou o legislador ao prever dois momentos distintos para recebimento da denúncia, tal situação não retira da análise do segundo momento a necessidade de que a defesa seja a última a falar.

A decisão que será tomada após a resposta à acusação tem consequências processuais relevantes, sendo inclusive equivalente a uma sentença de mérito. Tanto é verdade que o recurso cabível em uma eventual absolvição sumária é a apelação. Além disso, a não impugnação dessa decisão pelo Parquet faz surgir a coisa julgada material. Ora, se a resposta que pode levar o Juiz a prolatar uma sentença de absolvição não pode transportar para tal fase a ordem imperiosa das alegações finais, que outro momento processual poderia? É evidente que diante da possibilidade de uma decisão desse porte a defesa deve ser a última a falar.

Já quanto à segunda argumentação, é curioso que a violação direta de uma norma necessite, ainda, da comprovação de um prejuízo real para se declarar a nulidade. Não cabe ao magistrado, na regularidade do processo, criar um rito processual, mas sim respeitar o previamente estabelecido. A par desse entendimento, em não havendo o prejuízo, ao juiz tudo é possível no processo. É certo que na violação do rito processual o prejuízo é ex legis, ou seja, é decorrente da própria norma violada, não precisando ser demonstrado, pois presumido.

Ainda que se aceite tal inversão como mera irregularidade, o que se faz só por amor ao diálogo, sendo a inversão arguida em momento próprio, desaparecerá toda e qualquer necessidade de demonstração de prejuízo, vez que no sistema de nulidades processuais, uma vez essas arguidas no primeiro momento oportuno devem ser decretadas. Não cabe ao judiciário tirar a vigência do sistema de nulidades processuais, sob pena de se retirar da lei a imperatividade própria das normas jurídicas, passando essa a representar um mero indicativo de caminho a ser seguido.

Desse modo, a inversão do rito processual, com a abertura de réplica ao Ministério Público após a apresentação da Resposta à Acusação defensiva e antes da decisão prevista no artigo 397 do CPP, constitui grave afronta às garantias inscritas no artigo 5º, LIV e LV, da Constituição da República. A ilegal oportunidade concedida ao Ministério Público para análise do teor dos argumentos da defesa nessa fase preliminar deve sempre acarretar a nulidade do processo, devendo o ato de resposta à acusação ser renovado e a manifestação da acusação desentranhada dos autos da ação penal.

 

Eduardo Sanz é advogado, mestre em Ciências Jurídico-Criminais (U. Coimbra) e especialista em Direito Penal Empresarial (PUCRS) – eduardo@eduardosanz.adv.br

Colaboração: Luiz Henrique Merlin é advogado e mestre em Direito do Estado (UFPR) – merlin@eduardosanz.adv.br

Thiago Tibinka Neuwert é advogado. – thiago@eduardosanz.adv.br.

 


[i]“Inexistindo previsão legal de manifestação do Ministério Público após a defesa preliminar, é de rigor a anulação da ação penal, para que, em observância aos princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, seja assegurado ao réu o direito de falar por último antes de eventual absolvição sumária prevista no artigo 397 do CPP.” (TRF4, HC 5002458-67.2011.404.0000, Oitava Turma, Relator p/ Acórdão Paulo Afonso Brum Vaz, D.E. 25/04/2011)

[ii] “DEFESA PRÉVIA – ARTIGO 396 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – CONTRADITÓRIO. Quando a inversão implica nulidade absoluta, descabe transportar para a fase prevista no artigo 396 do Código de Processo Penal a ordem alusiva às alegações finais. Apresentada defesa prévia em que são articuladas, até mesmo, preliminares, é cabível a audição do Estado-acusador, para haver definição quanto à sequência, ou não, da ação penal.” (HC 105739, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 07/02/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-041 DIVULG 27-02-2012 PUBLIC 28-02-2012)

[iii] “O Juízo abriu vista ao Ministério Público para pronunciar-se quanto à sequência, ou não, da ação penal. Descabe, na espécie, transportar para tal fase a ordem imperiosa alusiva às alegações finais, quando, aqui sim, considerado até mesmo precedente de minha lavra, citado na inicial – Habeas Corpus nº 76.953/MT -, é impossível a inversão da ordem prevista em lei, ouvindo-se, após apresentação das alegações finais pela defesa, o Ministério Público. No caso, a audição deste se deu em momento peculiar, estranho ao espaço destinado às alegações finais, antes mesmo da designação de audiência. O que houve, na espécie, foi a observação de princípio medular do processo-crime – o contraditório.” (Íntegra do voto do Min. MARCO AURÉLIO).

[iv] “HABEAS CORPUS. NULIDADE. CRIME DE RESPONSABILIDADE DE PREFEITO. ART. 1º., I, DO DECRETO-LEI 201/67. CO-AUTORIA. MANIFESTAÇÃO MINISTERIAL APÓS DEFESA PRELIMINAR. VIOLAÇÃO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. NÃO OCORRÊNCIA. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. PÁS DE NULLITÉ SANS GRIEF. PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO…. 2. De acordo com o sistema da instrumentalidade das formas, abertamente adotado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, não se declara a nulidade do ato sem a demonstração do efetivo prejuízo para a parte em razão da inobservância da formalidade prevista em lei. 3. In casu, a defesa não logrou demonstrar o eventual prejuízo advindo da manifestação ministerial após a apresentação da defesa prévia. … Ordem denegada.” (HC 167.900/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, Julg. 27/09/2011, DJe 13/10/2011.)

 

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