Mais um golpe dos EUA contra o Tribunal Penal Internacional

“Tomaremos as medidas necessárias para assegurar que nossos esforços no sentido de honrar nossos compromissos de segurança global e proteger os americanos não sejam prejudicados pelas possíveis investigações, inquéritos ou processos a serem efetuados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), cuja jurisdição não se estende aos americanos, e a qual não aceitamos.”

A frase acima está prevista no documento “Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América”, escrito pelo presidente George W. Bush em 17/9/2002 e enviado ao Congresso dos EUA em 20/9/2003. Trata-se do mesmo texto que formulou a denominada “Doutrina Bush”, prevendo a realização de ataques armados preventivos dos Estados Unidos contra outros países, que embasou a recente invasão e dominação do Iraque, numa clara violação aos princípios do Direito Internacional e da Carta da ONU.

A vitória no Conselho de Segurança (CS) no último dia 12 de junho demonstra a firmeza e determinação do governo norte-americano para por em prática tais idéias. Em sessão pública, o CS aprovou a Resolução 1487, prevendo a renovação de mais um período de 12 meses em que o Tribunal Penal Internacional (TPI) não pode proceder a investigações e denúncias de pessoas nacionais de Estados que não são partes do TPI e que estejam envolvidas em qualquer missão de paz da ONU ou missões autorizadas por ela. Isso gera a imediata aquisição de imunidade por parte de oficiais norte-americanos, que configuram a maioria dos participantes daquelas missões.

No ano passado, o CS havia expedido por unanimidade a Resolução 1422, que criou essa sistemática do período de 12 meses, regulamentando-o de forma a possibilitar sua renovação. A fundamentação desse ato normativo estava no artigo 16 do Estatuto de Roma, que estabelece: “Caso o Conselho de Segurança, de conformidade com uma resolução aprovada com base no disposto no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, peça ao Tribunal que suspenda por um prazo de 12 meses a investigação ou ajuizamento que tenha iniciado, o Tribunal procederá a essa suspensão. A petição poderá ser renovada pelo Conselho de Segurança nas mesmas condições”. Em geral, o artigo 16 era interpretado por internacionalistas como uma faculdade do CS para ser utilizada excepcionalmente e mediante casos concretos trazidos ao Tribunal quando este estivesse em funcionamento, sem configurar uma submissão de suas atividades à autorização prévia do CS.

A medida encontrou séria oposição da União Européia, tendo sido aprovada por 12 votos a favor e 3 abstenções – França, Alemanha e Síria. Apesar de ser um avanço em relação ao ano anterior, quando a votação foi de 15 votos a zero (depois das ameaças dos EUA de se retirarem de algumas missões), o resultado tem sua significação crítica, haja vista que os três países não tiveram coragem de utilizar seu poder de veto. Pode significar também o início de uma prática anual de renovações, que certamente retirará a força do TPI e a credibilidade da ONU.

A criação do TPI foi prevista em 1998 pelo Estatuto de Roma, que entrou em vigor em 1.o de julho de 2002, quando ocorreu a 60a. ratificação (hoje há mais de 90). Ele tem competência para julgar indivíduos que, a partir daquela data, cometerem genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade – e não forem julgados por tribunais nacionais. Com sede na cidade da Haia, Holanda, o TPI será a primeira corte internacional criminal de caráter permanente, tendo em vista que os outros tribunais existentes foram criados pelo CS de forma transitória, apenas para julgar determinados fatos, como é o caso do Tribunal Internacional para julgar os crimes cometidos na ex-Iugoslávia e o Tribunal para julgar os crimes cometidos em Ruanda.

No entanto, como ficou demonstrado, esse grande avanço da comunidade internacional tem encontrado resistências de países importantes, como os EUA. Atitudes como essa, de isentar determinadas pessoas da sua jurisdição, demonstram a opção pela manutenção da impunidade, privilégio e desequilíbrio de poderes no cenário mundial. Exatamente os motivos pelos quais o TPI foi criado.

Tatyana Scheila Friedrich

é mestre/UFPR, professora de Direito Internacional Público e Privado e Direito da Integração Regional.

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