Lei Maria da Penha e justiça restaurativa

A maior parcela dos conflitos penais (dos crimes) envolvendo o homem e a mulher, no âmbito doméstico ou familiar ou íntimo, antes do advento da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), era decidida pelos juizados criminais (Lei 9.099/1995). Fatos ocorridos até 21.09.06, desde que a pena não seja superior a dois anos, eram (e ainda são) da competência dos juizados criminais. Os fatos posteriores (a partir de 22.09.06) passaram para a competência da Vara comum criminal (art. 33).

A Justiça do Futuro (mas que já está começando a ter nascimento em algumas cidades) está contemplada no art. 29 da Lei Maria da Penha que prevê, dentro dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a possibilidade de participação de uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde. A essa equipe compete fornecer subsídios escritos ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas voltados para a ofendida, agressor, familiares etc.

Justiça reparatória ou conciliatória (lei dos juizados), Justiça repressiva ou retributiva (atual contexto jurídico-forense da Lei Maria da Penha) e Justiça restaurativa (art. 29): esses são os três modelos de Justiça que devem ser claramente demarcados, sublinhando-se, desde logo, a superioridade do último sistema, que reúne todas as condições para solucionar e não só decidir os conflitos domésticos violentos, especialmente os que apresentam a mulher como vítima.

As diferenças mais marcantes entre tais sistemas são as seguintes (v., no que diz respeito às Justiças retributiva e restaurativa, Caetano Duarte, ?Justiça Restaurativa?, em Sub Judice, n.º 37, Coimbra: Almedina, out-dez 2006, p. 50):

(a) Justiça retributiva (clássica): o crime é uma ofensa ao Estado; Justiça reparatória (juizados): o crime é uma ofensa a um indivíduo e ao Estado; Justiça restaurativa: o crime é uma ofensa sobretudo a um indivíduo.

(b) Justiça retributiva: ênfase em estabelecer a culpa do agente, em rever o passado (cada um responde pelo que fez); Justiça reparatória: ênfase na reparação dos danos, evitando-se a pena de prisão (não se discute sua culpabilidade); Justiça restaurativa: ênfase em resolver o problema, olhar o futuro (o que deve ser feito?).

(c) Justiça retributiva: relação de oposição, processo conflitivo (espaço de conflito); Justiça reparatória: relação de convergência, processo consensual (transação e espaço de consenso); Justiça restaurativa: relação de diálogo, negociação, por meio da mediação.

(d) Justiça retributiva: imposição de sofrimento para castigar e prevenir; Justiça reparatória: reparação dos danos e imposição de penas alternativas; Justiça restaurativa: reparação dos danos, reconciliação, solução efetiva do conflito, restabelecimento da paz entre agressor e vítima.

(e) Justiça retributiva: processo com regras justas; Justiça reparatória: processo consensuado, autonomia da vontade, não discussão da culpabilidade (nolo contendere); Justiça restaurativa: processo de busca da reconciliação, relacionamento entre agressor e vítima, reconhecimento das expectativas de cada um e busca de solução definitiva para o conflito.

(f) Justiça retributiva: omissão do aspecto interpessoal do crime; Justiça reparatória: o crime é um conflito interpessoal e também uma ofensa ao Estado; Justiça restaurativa: o crime é sobretudo um conflito interpessoal, que deve ser ?solucionado? pelas partes (e não só decidido).

(g) Justiça retributiva: a uma ofensa social responde-se com outra (ao mal do crime o mal da pena; a pena é a negação do delito que é a negação da norma); Justiça reparatória: a prioridade é a reparação dos danos e a pena só pode ser alternativa; Justiça restaurativa: ênfase na reparação dos danos e, mais do que isso, restabelecimento da paz (entre agressor e vítima).

(h) Justiça retributiva: a comunidade não intervém, sendo representada (abstratamente) pelo Estado; Justiça reparatória: a comunidade não intervém, mas a preocupação primeira do Estado é com a reparação dos danos (não com a imposição da pena de prisão; de qualquer maneira ainda se exige uma pena alternativa); Justiça restaurativa: a comunidade participa do processo restaurativo que é levado a cabo por mediador (público ou privado).

(i) Justiça retributiva: encoraja os valores individuais, competitivos e conflitivos; Justiça reparatória: encoraja os valores reparatórios e conciliatórios, assim como a ressocialização por meio de penas alternativas; Justiça restaurativa: encoraja a mutualidade, o conhecimento mais profundo das pessoas envolvidas no conflito, a busca de uma solução definitiva para ele.

(j) Justiça retributiva: ação do Estado contra o agressor, ignorando a vítima e mantendo o agressor numa posição passiva; Justiça reparatória: ação do Estado visando à reparação dos danos e imposição de penas alternativas; reconhecimento da vítima e desejo de uma postura ativa do agressor; Justiça restaurativa: envolvimento da vítima e do agressor no processo de mediação, valorizando suas expectativas e necessidades, os direitos da vítima e encorajando o agressor a assumir a responsabilidade pelo fato.

(k) Justiça retributiva: responsabilização do agressor por meio da sujeição a uma pena; Justiça reparatória: responsabilização do agressor por meio da reparação dos danos e da imposição de penas alternativas; Justiça restaurativa: responsabilização do agressor por meio do reconhecimento do impacto da sua conduta assim como pela ajuda em decidir como repor a situação.

(l) Justiça retributiva: definição da ofensa em termos estritamente legais, sem atender a valores morais e sociais, nem à dimensão econômica e política do conflito; Justiça reparatória: entendimento da ofensa como ocasião para a reparação dos danos e imposição de uma pena alternativa; Justiça restaurativa: entendimento da ofensa em todo o seu contexto: moral, social, econômico e político.

(m) Justiça retributiva: o crime gera uma dívida para com o Estado e a comunidade em abstrato; Justiça reparatória: o crime gera uma dívida com a vítima e com o Estado; Justiça restaurativa: o crime gera uma dívida sobretudo com a vítima, cujo statu quo deve ser restabelecido tanto quanto possível.

(n) Justiça retributiva: resposta centrada no comportamento do agressor no passado; Justiça reparatória: resposta centrada nos prejuízos gerados pelo delito; Justiça restaurativa: resposta centrada em todos os efeitos danosos gerados pelo agressor (materiais, morais, emocionais etc.).

(o) Justiça retributiva: estigma da irreparabilidade do crime; Justiça reparatória: estigma da reparabilidade do crime por meio da reparação dos danos e penas alternativas; Justiça restaurativa: estigma da reparabilidade do crime por meio da ação restaurativa, levada a cabo pelo mediação.

(p) Justiça retributiva: falta de encorajamento do arrependimento e do perdão; Justiça reparatória: encorajamento à reparação dos danos e à ressocialização por meio das penas alternativas; Justiça restaurativa: encorajamento ao arrependimento, ao perdão, ao pedido de desculpas, ao restabelecimento da paz.

(q) Justiça retributiva: ausência de profissionais psicossociais para a decisão do caso; Justiça reparatória: ausência de profissionais psicossociais para a decisão do caso (decisão burocrática pelos agentes da Justiça); Justiça restaurativa: presença obrigatória de mediador e, quando o caso, de outros profissionais psicossociais.

(r) Justiça retributiva: ignorância completa da vítima; Justiça reparatória: favorecimento da vítima na reparação dos danos e sua ignorância completa no momento da transação penal; Justiça restaurativa: protagonismo absoluto da vítima e do agressor na solução do problema.

(s) Justiça retributiva: criminalização, prisionização; Justiça reparatória: despenalização, desprisionização; Justiça restaurativa: desjudicialização, despenalização, princípio da irrelevância penal do fato (dispensa da pena).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, Secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), Consultor e Parecerista, Fundador e Presidente da Rede LFG Rede Luiz Flávio Gomes de Ensino Telepresencial (1.ª do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais – www.lfg.com.br)

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