Lamy reforça sua imagem de hábil negociador em Davos

Se a rodada global de negociações comerciais for salva, será preciso creditar grande parte desse resultado à liderança do diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), o francês Pascal Lamy. Sua influência ficou evidente, mais uma vez, na miniconferência ministerial do fim de semana em Davos, quando mais um impasse foi rompido e os principais negociadores aceitaram o compromisso de fazer avançar todos os temas de forma equilibrada

Depois da atuação discretíssima dos dois antecessores, o neozelandês Mike Moore e o tailandês Supachai Panitchpakdi, o estilo de Lamy inevitavelmente chama a atenção. Ele foi o primeiro a enfatizar, em público, a mudança de discurso ocorrida na miniconferência de sábado e teve suficiente franqueza para se referir criticamente a um dos negociadores

Numa entrevista coletiva, logo depois do encontro, uma jornalista lembrou que o comissário de Comércio da União Européia, Peter Mandelson, passara a semana dizendo que não se moveria enquanto outros não se movessem. Lamy respondeu, em primeiro lugar, que a referência da jornalista a Mandelson era correta. Em seguida, afirmou que o representante europeu havia adotado uma nova atitude, e que "eu me mexo se todos se mexerem" é ligeiramente melhor que "eu não me mexo enquanto os outros não se mexerem"

Em seus comentários públicos, Lamy vai muitas vezes à substância das negociações, num lance arriscado para quem deve manter pelo menos a aparência de imparcialidade. Todos sabem o que é preciso fazer, disse ele na entrevista. Todos sabem que os Estados Unidos precisam se mover em relação aos subsídios internos que distorcem o comércio, que a União Européia tem de se mover em relação ao acesso a mercado para produtos agrícolas e que Brasil Índia e outros grandes países em desenvolvimento têm de fazer algo em relação às tarifas sobre produtos industriais

Isso é muito mais que a descrição de uma agenda. É uma avaliação de questões que vêm dificultando o progresso da rodada

Horas depois, numa sessão do Fórum Econômico Mundial, Lamy tentou mostrar por que é a reforma do comércio agrícola é politicamente indispensável. Há duas opiniões sobre como incluir a agricultura no sistema de regras comerciais, explicou o chefe da OMC. Segundo alguns, é preciso tratar o comércio de produtos agrícolas como se trata o comércio de sapatos, liberalizando os mercados e levando em conta as vantagens competitivas

Segundo outros, a agricultura é uma atividade especial e é preciso tratá-la de forma diferenciada. Pode-se concordar com uma ou outra dessas opiniões, disse Lamy, mas isso não elimina um fato: subsídios causam distorções e são especialmente injustos porque as economias em desenvolvimento não têm dinheiro para subsidiar a agricultura. Ele não tomou partido, nesse momento, em relação às duas bandeiras que se opõem nas negociações comerciais

Como comissário de Comércio União Européia, até o final do ano passado, Lamy havia defendido o tratamento especial para a agricultura, com base nas chamadas preocupações não comerciais (conservação do ambiente e da paisagem, preservação das comunidades rurais e assim por diante). Segundo os negociadores brasileiros e outros críticos dessa posição, as chamadas preocupações não-comerciais poderiam converter-se em meros biombos para políticas protecionistas

Como diretor-geral da OMC, Lamy não tem mais de tomar partido nessa discussão, mas pode opinar – e opina — sobre o que é essencial na rodada: a eliminação de fatores que distorcem a operação dos mercados e impedem o jogo equilibrado. A atuação de Lamy também foi importante para impedir um novo fiasco, talvez pior que o de Cancún, na 6ª Conferência Ministerial da OMC, realizada em dezembro, em Hong Kong. Ele não só acompanhou as longas e penosas discussões que avançavam até muito tarde e na última etapa atravessaram a noite. Ele batalhou o tempo todo para aproximar as posições e para converter num modesto sucesso o que poderia ter sido um enorme fracasso

"Pelo menos duas noites fui dormir achando que estava tudo perdido, para no dia seguinte descobrir que Lamy conseguia manter as negociações em andando", recordou em Davos o chanceler brasileiro Celso Amorim

Lamy completará 59 anos em abril. Sua carreira tem muito em comum com a de outros burocratas franceses formados pela Escola Nacional de Administração, uma das fontes principais de quadros para o governo e também para a política. São uma elite e não parecem envergonhar-se disso

Não por acaso os formados por essa escola são tradicionalmente conhecidos como "enarques", ou, em português, "enarcas", os homens de governo originários da ENA. De lá saíram, entre outros políticos famosos, Valéry Giscard d’Estaing, Pascal Arrighi e Alain Peyrefitte. Lamy serviu como funcionário do Ministério de Finanças, foi chefe de gabinete de Jacques Delors na Presidência da Comissão Européia, executivo principal do banco Crédit Lyonnais na fase preparatória da privatização e comissário europeu de Comércio até o ano passado. Teve conflitos com os governantes europeus, nessa posição, por avançar, nas negociações agrícolas, além das posições mais defensivas sustentadas, em primeiro lugar, por seus compatriotas franceses

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