Insólita contradição

O apelo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos empresários presentes à sua palestra no Council on Foreign Relations, no final de setembro, em Nova York, de que apóiem o desenvolvimento brasileiro com investimentos produtivos, choca-se com os dois anteprojetos de lei do governo relativos às agências reguladoras de serviços públicos operados pela iniciativa privada. Para as grandes companhias, a leitura prática das duas propostas é “não invistam no Brasil”.

Dois itens dos projetos conspiram de forma direta contra a confiança dos investidores. O primeiro é o que retira das agências e devolve à administração centralizada a prerrogativa de realizar licitações e assinar contratos de prestação de serviços públicos. O segundo é o que vincula novamente as agências, por meio de contratos de gestão, à orientação política do governo. Na prática, isso significa perda de autonomia e possibilidade de mudanças nas regras do jogo a cada eleição. E não há nada que assuste mais o capital do que essa volatilidade.

A aprovação dos projetos representaria retrocesso no plano de modernização da infra-estrutura e melhoria de serviços públicos, viabilizado pela desestatização implementada na gestão do ex-presidente Fernando Henrique. O programa eximiu o governo dos altíssimos custos de construção e manutenção da infra-estrutura, conservando, porém, a prerrogativa do Estado e da sociedade, por meio das agências, de interceder em defesa dos interesses maiores da nação. Este, sem dúvida, é um dos itens mais importantes da recente reforma do Estado, relacionada à regulamentação e fiscalização das concessões de bens e serviços públicos.

Assim, o eventual esvaziamento das agências deveria ser objeto de um debate mais amplo, praticamente inviabilizado pelo exíguo período de sete dias, estranhamente estabelecido para a audiência pública de análise dos dois anteprojetos do governo Lula. Ignora-se o pensamento dos setores de atividades afins, dos especialistas, instituições e entidades de classe, que, preocupados, têm-se debruçado responsavelmente sobre o tema. Exemplo disso é o seminário “O poder regulador das agências”, realizado, em 5 de maio último, em São Paulo, pelo Instituto Roberto Simonsen, organismo de estudos avançados ligado ao Sistema Fiesp. O evento produziu conteúdo analítico profundo sobre a questão, que poderia ter sido, a exemplo de outras contribuições, levado em conta na elaboração dos anteprojetos.

Chega a parecer, dado o açodamento e aparente falta de lógica na cassação das prerrogativas das agências, que os anteprojetos tenham inspiração apenas de cunho ideológico. Aperfeiçoar a missão e funcionamento das agências, como tem propalado na mídia o ministro Antônio Palocci, da Fazenda, é tarefa importante. Contudo, é imprudente extinguir sua autonomia, submetendo novamente toda a gestão e regras dos serviços públicos às vicissitudes políticas, como estabelecem os anteprojetos do governo Lula e como é possível aludir nas próprias declarações do presidente da República. Contradições dessa natureza geram desconfiança e perda de credibilidade.

O Brasil avançou nos últimos anos na modernização de sua máquina administrativa baseado em três princípios: nem Estado mínimo, nem Estado máximo e sim o Estado necessário para cuidar de tudo aquilo que não pode executar diretamente, mas não deve delegar plenamente; o governo propõe, induz, estimula, torna viável e regulamenta; e o Estado financia a parte que lhe compete na parceria e presta contas à sociedade de todos os seus atos, sem se omitir em qualquer hipótese. As agências cumpriram papel importante no processo. A primeira foi a Aneel (energia elétrica), em 1996. Depois, surgiram a Anatel (telecomunicações), em 1997, e ANP (petróleo), no ano seguinte. Hoje, há mais cinco agências, duas no setor de saúde complementar e vigilância sanitária (ANS e Anvisa); duas no de Transportes (Antaq – aquaviários e ANTT – transportes terrestres); e uma para os recursos hídricos (ANA) – CSPE (SP).

Apesar dos avanços já verificados, o País ainda precisa dar grandes passos em termos de infra-estrutura, na qual há imenso potencial de investimentos, geração de empregos e descentralização da economia. Claro está, portanto, que as agências reguladoras têm papel decisivo para que o Brasil atenda a essa demanda potencial e cumpra a meta expressa pelo presidente Lula aos empresários estrangeiros, de deixar de ser emergente e se tornar desenvolvido. Nesta saga, entretanto, não há espaço para contradições entre o discurso e a prática.

Ruy Martins Altenfelder Silva é advogado e presidente do Instituto Roberto Simonsen. Foi secretário da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo.

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