Guerra contra o Iraque (IX) – Quem vai reconstruir o Iraque?

O caos que se instaurou no Iraque antecipa as inúmeras dificuldades que serão encontradas para governar o país depois do conflito e da derrubada de Saddam Hussein. Desperta também o debate em torno do titular da tarefa de organizar o sistema político, econômico social e cultural do país.

Um cenário de saques, incêndios, ataques suicidas, guerrilha civil, redes de água, luz e telefone completamente destruídas, hospitais lotados de feridos da guerra e falta de comando central soma-se à existência de milhares de pessoas com poucos mantimentos mas com grandes expectativas. Há, ainda, dezenas de grupos étnicos e religiosos que não se toleram, além de inúmeros agrupamentos de oposição que estão no exterior e se consideram legítimos para liderar essa potência petrolífera que é o Iraque.

Os EUA já definiram as regras para a reconstrução. Apenas empresas americanas participarão inicialmente do processo, podendo posteriormente subcontratar empresas de outras nacionalidades. E as escolhas feitas até o momento demonstram uma expressa preferência por aquelas que tenham relações com funcionários do alto escalão do governo americano ou que financiaram a campanha eleitoral do presidente Bush, numa clara violação dos princípios da igualdade, impessoalidade, razoabilidade e julgamento objetivo, dentre tantos outros que devem reger um processo licitatório.

Apesar da discordância norte-americana, lideranças mundiais antiguerra propugnam um papel primordial para a ONU nesse processo de restabelecimento da ordem iraquiana. Seria uma forma resgatar a credibilidade da instituição e dar legitimidade à reconstrução, além de garantir a participação de países como Rússia, França e Alemanha.

Mas a principal questão parece afastada do debate que se instaurou no cenário internacional. E o POVO iraquiano? Essa deveria ser a principal preocupação mundial. A tarefa de reconstrução de um país tem que ser realizada pelo seu povo, no sentido de verdadeiro construtor da sua história, afastando sua noção vazia reduzida à retórica (ícone) e aproximando seu conceito enquanto proposta com conteúdo de realidade, na linha de ensinamento de Friedrich Muller. O mestre de Heidelberg, que em obra estuda a totalidade deste conceito plurívoco que é o povo, ao analisar apenas uma das suas acepções (povo ativo), demonstra algumas exigências que são inerentes à construção de uma democracia. São idéias que indubitavelmente deveriam ser levadas em consideração nesta fase da história iraquiana que agora se inicia: Mas se o povo – mesmo no conjunto normativamente restrito de povo ativo – deve apresentar-se como sujeito político real, fazem-se necessárias instituições e, por igual, procedimentos: a eleição de uma assembléia constituinte, o referendo popular sobre o texto constitucional, instituições jurídicas plebiscitárias, eleições livres e destituição por meio do procedimento plebiscitário e votação. Alternativas e sanções devem ser normatizadas de forma cogente no tocante aos procedimentos. A pequena lâmpada do ícone pode extinguir-se; o povo – nem que seja apenas o seu conjunto parcial dos cidadãos titulares de direitos ativos – entra em cena como destinatário e agente de responsabilidade e controle. (MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo?. A questão fundamental da democracia. São Paulo: Max Limonad, 2000. 2 ed. p.73)

Tatyana Scheila Friedrich

é advogada, mestre pela UFPR, membro do Nupesul (Núcleo de Pesquisa em Direito Público do Mercosul/UFPR) e professora de Direito Internacional Público no curso de Direito das Faculdades Curitiba e nos cursos de graduação e pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP.

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