Eutanásia: dono da vida, o ser humano é também dono da sua própria morte? (I)

Os filmes Mar Adentro (que conta a história de Ramón Sampedro, que tentou legalizar a eutanásia na Espanha) e Menina de Ouro, neste verão de 2005, reacenderam, mais uma vez, a velha polêmica em torno da eutanásia. Em nossa opinião, dono da vida, o ser humano deve também ser, dentro de determinadas circunstâncias e segundo certos limites, o dono da sua própria morte. Aliás, já o é no suicídio, o que significa, desde logo, uma relativização do ?direito à vida? (que equivocadamente é ensinado nas faculdades, em geral, como se fosse algo absolutamente indisponível, o que não é verdade).

Vida e morte, de acordo com os crentes, pertencem a Deus. Mas não só a ele. O que o Direito Internacional vigente no Brasil (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, art. 6.º, e Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San Jose -, art. 4.º) proclama é o seguinte: o direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse direito deve ser protegido por lei e ninguém poderá ser arbitrariamente privado da vida. Enfatizando-se: ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. Em conseqüência, havendo justo motivo, é dizer, razões fundadas, não há como deixar de se afastar a ilicitude da conduta.

Eutanásia, etimologicamente, significa ?morte boa? (eu = bom/boa; thánatos = morte) ou ?morte sem grandes sofrimentos?. Portanto, e desse modo já começam os limites necessários, só se pode falar em eutanásia quando alguém padece de grave sofrimento físico e/ou mental. O que o regime nazista chamou de eutanásia (Lei para a prevenção das enfermidades hereditárias, 1933) era, na verdade, um holocausto, uma técnica autoritária e aberrante de eliminação de seres humanos. Já não é esse, exatamente, o caso da denominada ?morte assistida? (ou suicídio assistido, que consiste no auxílio para a morte de uma pessoa, que pratica pessoalmente o ato que conduz à morte: toma o veneno, por exemplo), que foi amplamente praticada pelo Doutor Morte (Jack Kevorkian), que se acha condenado nos Estados Unidos por ter ajudado centenas de pessoas a morrer desde 1990.

A Holanda foi o primeiro país (em 2002) a adotar a prática da eutanásia (eutanásia ativa, que consiste em praticar atos que conduzem à morte do paciente terminal). Mas é preciso ser médico para praticar a eutanásia e, ademais, isso só é possível quando não há mais chance de vida e desejo expresso do paciente (ou da sua família, quando ele está inconsciente e já tinha manifestado antes interesse pela eutanásia). Um outro especialista (médico) deve atestar a irreversibilidade da morte. Como se vê, várias são as medidas cautelares que antecedem a eutanásia. Tudo é feito para que não aconteça a morte arbitrária. Ao contrário, a morte tem que ser justificada. A colidência se dá, na eutanásia, entre o direito à vida e o direito à morte: o primeiro só pode sucumbir quando o sofrimento que padece o paciente chega a afetar a sua própria dignidade.

A Bélgica, depois da Holanda, também já permite a eutanásia ativa. O Estado de Oregon (EUA) autoriza a morte assistida (suicídio assistido: ajuda para que o paciente terminal realize sua própria morte). A ortotanásia (desligamento de aparelhos ou retirada de medicamentos, cessação de auxílio para a distanásia – prolongamento da vida – etc.), por seu turno, já é autorizada na Alemanha e na França. No Brasil nada disso existe. Qualquer tipo de eutanásia que se pratique (ativa ou passiva), legalmente, é considerada homicídio. O assunto ainda não foi discutido nas cortes superiores (STF e STJ). Temos julgados de Tribunais estaduais no sentido do homicídio (privilegiado, isto é, com pena diminuída).

Em 1903 um movimento pró-eutanásia tentou legalizá-la na Alemanha, mas o Parlamento não autorizou; em 1925 na ex-Checoslováquia foi autorizada a diminuição ou isenção de pena; em 1993, na Inglaterra, a Justiça autorizou a primeira eutanásia passiva (desligamento de aparelhos); em 1997 o Governo de Oregon (EUA) legalizou a eutanásia, mas a Corte Suprema eliminou tal possibilidade; aprovou-se depois lá a ?morte assistida?; em 1996 um Estado autraliano (Northern Territory) aprovou a eutanásia, mas logo depois voltou atrás. Conclusão: foi a Holanda o primeiro país democrático que aprovou a prática da ?morte boa?. Apesar do nosso horror à morte, que se deve, segundo Mário Vargas Llosa, à difusão na cultura ocidental da idéia cristã da transcendência e do castigo eterno que ameaça o pecador, o certo é que existe a ?boa morte? (quando o sofrimento afeta profundamente a própria dignidade humana).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista e diretor-presidente da Rede de Ensino PRO OMNIS (1.ª Rede de Ensino Telepresencial da América Latina – www.proomnis.com.br)

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