Eu, o Supremo

De que me acusam estes anônimos papelórios? De ter dado a este povo uma pátria livre, independente, soberana? O que é mais importante de ter-lhe dado o sentimento de pátria? De tê-la defendido desde seu nascimento contra os embates de inimigos de dentro e de fora? Disso me acusam?

Queima-lhes o sangue que eu haja assentado, de uma vez por todas, a causa de nossa regeneração política no sistema da vontade geral. Queima-lhes o sangue que haja restaurado o poder do comum na cidade, nas vilas, nos povoados; que haja continuado aquele movimento, o primeiro verdadeiramente revolucionário que explodiu nesses continentes, antes ainda que na imensa pátria de Washington, de Franklin, de Jefferson; inclusive antes da Revolução Francesa.

É preciso refletir sobre estes grandes feitos que os senhores seguramente ignoram, para valorizar em todo o seu alcance a importância, a justeza, a perenidade de nossa causa.

Quase todos vocês são veteranos servidores. A maioria, todavia, não teve tempo de instruir-se a fundo sobre estas questões de nossa História, amarrados às tarefas do serviço. Preferi-os como leais funcionários que como homens cultos. Capazes de realizar o que mando. Não me preocupa o tipo de capacidade que possui um homem. Unicamente exijo que seja capaz.

Aqui antes da Ditadura Perpétua, estávamos cheios de escreventes, doutores, homens cultos, não de cultivadores, agricultores, homens trabalhadores como deveria ser e agora é. Aqueles cultos idiotas queriam fundar o Areópago das Letras, Artes e Ciências. Pus-lhes o pé em cima. Tornaram-se pasquineiros, panfletários. Os que puderam salvar a pele fugiram. No estrangeiro fizeram-se piores ainda. Convulsionários vaidosos, viciosos, ineptos, não têm lugar em nossa sociedade camponesa. Que podem significar aqui suas façanhas intelectuais? Aqui é mais útil plantar mandioca ou milho do que pintar papeluchos sediciosos; mais oportuno desbichar animais atacados pelo carrapato do que carrapatear panfletos contra o decoro da pátria, a soberania da República, a dignidade do governo. Depois virão os que escreverão pasquins mais volumosos. Chamarão a isso livros de história, novelas, exposições de feitos imaginários adubados ao gosto do momento ou de seus interesses. Profetas do passado contarão neles suas inventadas patranhas, a história do que não aconteceu. O que não seria de todo mau se sua imaginação fosse relativamente boa. Historiadores e romancistas encadernarão seus embustes e os venderão a um preço muito bom.

Por enquanto a posteridade não nos interessa. Não se presenteia ninguém com a posteridade. Algum dia ela voltará para nos procurar. Eu só obro o que muito mando. E só mando o que muito posso. Mas como Governante Supremo também sou vosso pai natural. Vosso amigo. Vosso companheiro. Como quem sabe tudo o que há para se saber e mais, irei instruindo-vos sobre o que deveis saber para seguir adiante.

Quando empunhei o Poder Supremo, aos que me aconselharam como primeiras e segundas intenções que me apoiasse nas classes altas, disse: Senhores, no momento poucas graças. Na situação em que se encontra o país, em que me encontro eu mesmo, minha única nobreza é a plebe. Não sabia que em outra ocasião o grande Napoleão pronunciara iguais ou parecidas palavras. Apequenado, derrotado depois, por ter traído a causa revolucionária de seu país.

Quanto a mim, em benefício de todos não tenho parentes nem enteados nem amigos. Os libelistas me jogam na cara que uso de maior rigor com meus parentes, com meus velhos amigos. Rigorosamente certo. Mas ainda há quem me compare a Calígula e chegue ao extremo de inquietar a Incitatus, nome do cavalinho feito cônsul por ocorrência peregrina do idiota ditador romano. Agradecemos a Augusto Roa Bastos pela transcrição e pelo fiel retrato da paranóia de governantes de todas as épocas. 

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