ESTATUTO DO DESARMAMENTO: Seus Equívocos e a Abolitio Criminis

O denominado Estatuto do Desarmamento (Lei n.º 10.826/2003), que entrou em vigor em 23.12.2003, com todo respeito às opiniões em contrário, tenho que se trata de desfavor à sociedade em geral, criando às pessoas de bem maior transtorno do que benefício, presenteando os infratores desta modalidade de delitos praticados na vigência da Lei n. 9.437/97, haja vista que dito Estatuto conferiu abolitio criminis as condutas infracionais previstas nesta lei, e ainda, o endurecimento da nova lei não oferece possibilidade de diminuição da quantidade de crimes praticados com violência contra a pessoa.

Temos que somente as pessoas de bem, que sempre procuram enquadrarem-se nos regramentos legais é que cumprirão as determinações do citado Estatuto. As demais, não se enquadrarão neste novo regramento.

Tal afirmativa pode receber a resposta contrária no sentido de que aqueles que infringirem a norma ficarão sujeitos às suas penalidades, o que em termos teóricos é verdade, mas na prática, isso não ocorrerá, e nem dita ameaça de sanção implicará em desestimulo ao porte de arma de fogo.

Este nosso pessimismo tem como base estatísticas reais, como por exemplo, a existência no Brasil de mais de cento e vinte mil mandados de prisão pendentes de cumprimento, cujos números são divulgados pelos próprios órgãos públicos responsáveis pelo cumprimento destas ordens prisionais.

Ora, se o Estado não encontra estas pessoas para cumprir os mandados de prisão, certamente também não as encontrará para verificar se estão ou não armadas, e são elas as quem mais barbarizam nossas vidas.

Assim, estas pessoas, além de outras que optaram por viver da criminalidade, continuarão a andar armadas, sendo que apenas uma ou outra, dentro do enorme universo destes indivíduos, que serão presas.

Ademais, sempre respeitando opiniões em contrário, é falaciosa a argumentação no sentido de que a proibição das pessoas portarem armas diminuirá os crimes dolosos violentos contra a pessoa, porque praticamente o total destes criminosos cometem crime com arma que não possuíam autorização para portá-la. Basta dizer que estes mais de cento e vinte mil infratores que possuem contra si mandado de prisão, não poderiam pela lei anterior adquirir arma de fogo, muito menos registrá-la em seu nome e ter autorização para porte.

Assim, os criminosos continuarão a andar armados, e o pior, tendo a certeza de que suas vítimas (as pessoas de bem) estarão desarmadas, facilitando-se, e até incentivam-se assaltos, pois os delinquentes sabendo que estamos desarmados, nos atacarão sem o menor medo.

Portanto, dito Estatuto na prática não impedirá que os infratores andem armados, servindo apenas para pôr uma placa na testa de cada pessoa de bem com o dizer “desarmado”. Quando a lei anterior autorizava que andássemos armados, aos menos os criminosos tinham dúvidas para nos abordarem, se estávamos ou não armados. Agora terão certeza de que estamos desarmados.

Assim, nos encontramos em situação completamente adversa, por não podermos usar arma para nos defender, enquanto para os delinqüentes, na prática, nada muda. A nossa valorosa polícia, apesar dos seus esforços, não possui estrutura para com eficácia razoável, prevenir ou impedir que sejamos vítimas desta modalidade de crimes. Diante deste quatro só nos resta apelar para Deus, os Santos, nosso Anjo da Guarda, ou outras crenças que venham do além. É triste mas é justamente nesta situação que nos encontramos.

Se antes já havia responsabilidade objetiva do Estado por esta modalidade de crimes, agora ela é indiscutível, porque não se permite que as pessoas de bem portem armas. Qualquer vítima destes delitos passa a ter inquestionável o seu direito à indenização pelo Estado. Nestas indenizações a sociedade (nós) além de ficar desprotegida pelo Estatuto do Desarmamento, ainda terá que pagar as indenizações que certamente ele dará origem.

Também dentre outros equívocos técnicos e práticos podemos citar a previsão de crime para quem portar munição de arma de uso não proibida, prevendo a mesma sanção para quem estiver portanto dita arma de fogo. Ora, a sanção penal tem seu quantum fixado segundo a maior ou menor potencialidade lesiva ao bem jurídico tutelado. Na norma em análise não se pode admitir que o porte de uma arma tenha a mesma potencialidade do solitário porte da munição de arma. Cuida-se, portanto, de equívoco, inclusive ferindo princípio constitucional da proporcionalidade da pena segundo a infração penal.

Mas a maior aberração da lei ficou por conta da abolitio criminis em relação aos crimes regidos e praticados na vigência da Lei nº. 9.437/97, a qual restou determinada no artigo 36 do Estatuto em análise, ao rezar que “É revogada a Lei n.º 9.437, de 20 de fevereiro de 1997.”

Veja-se que dito artigo não revogou disposições em contrário, onde neste caso incidiria a lei anterior, mas sim a própria lei, sem qualquer ressalva à convalidação dos atos praticados durante a sua vigência.

Pelo conceito do instituto da revogação, toda norma que é revogada, deixa de existir no mundo jurídico, não podendo mais ser restabelecida. Quando a norma não faz qualquer ressalva ás relações havidos durante a sua vigência, em se tratando de norma penal material, como é o presente caso, a lei anterior deixa de viger, e as condutas praticadas sobre a sua vigência deixam de ser crime, ocorrendo a chamada abolitio criminis.

Poder-se-ia até argumentar que nas hipóteses em que a lei anterior prevê para as condutas infracionais sanção igual ou menor que a nova lei, mesmo no caso de revogação da norma antiga sem qualquer ressalva, tais condutas estariam acobertada pela norma mais nova que é mais benéfica, incidindo a regra do artigo 5.º, inciso XL, da Constituição Federal e artigo 2.º, Parágrafo Segundo, do Código Penal, segundo preceitos que a nova lei retroage quando for mais benéfica.

Esta inclusive foi a interpretação dada pelos nossos Tribunais em relação a Lei n.º 9.983/2000, que criou a figura do artigo 168A, do Código Penal, revogando o artigo 95 da Lei n.º 8.212/91. Neste caso a pena originária era de dois a seis anos, vindo pela nova lei a ser fixada em dois a cinco anos. Portanto, repetiu-se a conduta infracional contida na norma anterior revogada e diminuiu-se a pena.

No caso ora em estudo não é possível a incidência desta regra porque a nova lei em todos os aspectos é mais maléfica aos infratores em relação ao apenamento.

Assim, como a lei nova é mais maléfica em relação à antiga, fica vedada a sua incidência, pelo princípio atrás enfocado, e uma vez tendo havido a revogação da norma anterior, sem qualquer ressalva ás condutas praticadas sob sua vigência, resta configurada a abolitio criminis.

Neste caso, ainda que venhamos admitir que tendo a nova lei repetido as condutas da norma antiga os crimes praticados na vigência da lei antecedente continuam sendo considerados típicos, mesmo assim esta conclusão para efeitos de apenamento é inócua, não sendo possível aplicar-se as penas fixadas na lei anterior, face sua revogação, e há proibição legal de fazer incidir as sanções da nova norma porque mais graves.

Admitida esta hipótese, em relação às penas, a lei nova revogou as sanções penais previstas na lei antiga, criando para estas condutas, novas penas, e mais graves. Desta forma não há como se pretender aplicar pena revogada ou mais grave. Portanto, não há base legal para se aplicar qualquer tipo de pena, seja da lei anterior ou da lei nova.

Para o presente caso, considerando que a Lei n.º 9.437/97 não revogou a Lei das Contravenções Penais nos pontos em que tratou da mesma matéria (Decreto-lei n.º 3.688/41), é possível defender entendimento no sentido de que incide esta lei para as condutas previstas nela e na lei revogada, o que a princípio não achamos a melhor interpretação por tratar-se de sucessão de leis penais, e durante o período de vigência da Lei n.º 9.437/97, para tais condutas infracionais não incidia o Decreto-lei n.º 3.688/41.

Diante deste quadro podemos constatar que:

a) o Estatuto do Desarmamento na prática não conseguirá desarmar os criminosos de delitos violentos contra a pessoa;

b) os infratores na sua grande maioria, especialmente aqueles mais de cento e vinte mil que possuem mandados de prisão contra eles expedidos continuarão a andar armados, pois nossas autoridades sequer conseguem cumprir ditos mandados de prisão, muito menos conseguirão desarmá-los;

c) este Estatuto somente terá valia para as pessoas de bem que cumprirão as suas regras, as quais dificilmente cometem crimes, o que implica em admitirmos que este procedimento não resultará em diminuição da criminalidade;

d) os infratores a partir deste Estatuto terão certeza de que as pessoas estão desarmadas, cuja circunstância servirá, inclusive de incentivo para que sejamos vítima desta modalidade de crimes;

e) a nova lei conferiu abolitio criminis aos delitos perpetrados na vigência da Lei n. 9.437/97;

f) se não admitirmos a ocorrência de abolitio criminis, ainda assim as condutas infracionais praticadas enquanto vigia a Lei n.º 9.437/97, ficam sem apenamento, porque as penas atribuídas à estes delitos pela lei nova são mais graves.

Jorge Vicente Silva

é pós-graduado em Pedagogia em nível superior e Especialista em Direito Processual Penal pela PUCPR, autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, Tóxicos, análise da nova lei, Manual da Sentença Penal Condenatória. Todos os artigos deste autor no Site: jorgevicentesilva.com.br e E-mail:
jorgevicentesilva@jorgevicentesilva.com.br

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