Ensino Jurídico: a importância das disciplinas propedêuticas

A progressiva valorização das disciplinas de instrução básica, ocorrida nos últimos anos no âmbito das grades curriculares de direito, merece uma reflexão mais acurada no que diz respeito às motivações e consequências. Apesar de alguns poucos alunos e analistas encontrarem óbice em ?perder? um semestre (ou mais) do curso assistindo aulas de História do Direito, Sociologia, Filosofia, Antropologia e Ciência Política, por buscarem um ensino mais técnico do Direito, a ?humanização? das grades curriculares tem acontecido.

Como entender tal transformação? Provavelmente, trata-se do arranjo de dois fatores que, combinados, adquirem força explicativa para o fenômeno. De um lado, a experiência autoritária instituída em 1964 forçou muitos operadores do direito a abandonarem a postura de neutralidade diante do ordenamento jurídico do país. A discordância com as arbitrariedades do regime impeliu uma parte considerável dos profissionais do direito a renunciar uma pretensa imparcialidade e optar por formas de atuação profissional mais empenhadas com a proteção de grupos sociais vulneráveis. O trânsito desses profissionais pelos diversos movimentos sociais que se organizaram a partir da década de 1970 foi fundamental para levá-los à reflexão sobre o papel do ordenamento jurídico e de seus operadores nas sociedades contemporâneas. É sintomática a força com que os conceitos gramscianos de ?hegemonia? e ?intectual orgânico? não somente ganharam poder explicativo como tornaram-se refereciais para ação profissional engajada.

De outro lado, uma parte considerável desses novos operadores do sistema jurídico, formados no contexto autoritário, começou a pensar as implicações epistemológicas desta mudança de postura profissional. Foi assim que muitos optaram por realizar tal reflexão no interior dos programas de pós-graduação stricto sensu, tanto no Brasil como no exterior, onde o diálogo com a Sociologia, a História, a Economia, e a Política, entre outras, era mais intenso. Como resultado, os anos oitenta viram surgir um grupo de jovens professores universitários que procuravam interpretar com mais riqueza as interações entre Direito, Lei e Justiça, a partir de referenciais fornecidos por aquelas disciplinas com as quais o diálogo se estabelecia.

Estas interseções entre os campos do Direito e das Ciências Sociais e Humanas não podem ser entendidas como estando apartadas do movimento profissional que busca o envolvimento social dos que se ocupam do funcionamento do sistema jurídico nacional. A revalorização das ?humanidades? no interior das Ciências Jurídicas gerou implicações de suma importância neste campo do saber. Quais os reflexos dessa transformação sobre o ensino jurídico?

Em primeiro lugar, nota-se uma mudança paradigmática no campo do Direito. O diálogo com teorias econômicas, sociológicas, históricas, antropológicas e políticas tem encorajado o abandono das concepções positivistas do sistema jurídico. Paulatinamente as noções de uma sociedade estática, de confusão entre lei e justiça e de sacralização do sistema jurídico vêm sendo substituídas por idéias de dinamismo social, de separação clara entre lei e justiça e de sistema jurídico como fruto da dinânica social. Em outras palavras, o ordenamento jurídico deixa de ser visto como algo externo à sociedade (quase com autoridade divina) e começa ser entendido como resultante do conflito e da correlação de forças entre classes e grupos sociais. A dessacralização da lei promove o entendimento de que a estrutura jurídica de um agrupamento social é produto da sua dinâmica política refletindo, inclusive, a assimetria de poder existente entre os atores. Cada vez mais os alunos dos Cursos de Direito têm sido estimulados a refletir sobre o papel do Direito na sociedade a partir de referenciais teóricos nascidos naquelas disciplinas de formação geral.

Em segundo lugar, vislumbra-se a construção de uma nova postura ética entre os profissionais encarregados de dar funcionamento ao sistema jurídico. A importância das disciplinas propedêuticas para provocar questionamentos quanto a postura dos operadores do direito frente à comunidade é fundamental. Discussões no âmbito dessas disciplinas têm oportunizado avaliar a postura profissional, influenciada pela ?cultura bacharelesca? do ?você sabe com quem está falando??, do ?Senhor Doutor?, que colocava o operador do Direito como um ente situado acima de toda a sociedade. Figura nascida ainda na época do Império, o ?bacharel? corporificava os valores de uma sociedade autoritária, patrimonialista e tradicional (para usar terminologias weberianas). A utilização daquelas disciplinas como ferramenta de questionamento do papel sócio-político dos operadores do Direito é de importância indescritível. É reconhecida sua contribuição para a crítica e abandono do perfil profissional bacharelesco que, dono de um vocabulário hermético, se colocava como único tradutor do diálogo (sempre difícil) entre Estado e sociedade.

Em que pese as resistências, a interseção entre o Direito e as disciplinas de formação geral, no âmbito do ensino jurídico, tem contribuído para qualificar os egressos dos cursos jurídicos. É nítida a postura crítica com que muitos deles têm tratado as questões afetas ao seu metier. Nas diversas esferas em que atuam têm militado em prol das liberdades democráticas, da justiça social e dos direitos humanos. É assim que vimos engrossar movimentos pela democratização da administração governamental, pela ampliação da participação popular nas decisões públicas, pela democratização do acesso à Justiça (como os movimentos ?Juízes para a Democracia? e ?Ministério Público Democrático?), bem como, pela humanização do Direito Penal.

Do mesmo modo que as disciplinas zetéticas oferecem um contraponto às dogmáticas, dotando o conhecimento jurídico de um potencial dialético transformador, o espírito crítico tende a oferecer a contrapartida ao comportamento conservador ou descompromissado, dando à atividade profissional dos operadores do Direito uma capacidade de transformação social que é imprescindível para um Estado ainda em desenvolvimento.

Valter Fernandes da Cunha Filho é mestre e doutor em História, Cultura e Poder, professor de Ciência Política e Teoria do Estado e Coordenador do Núcleo de Monografias do Curso de Direito da UniBrasil.

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