Dois bicudos

Os comandantes do Executivo e do Judiciário (por enquanto o Legislativo está de fora) não conseguem dissimular o azedume que permeia suas relações. Como em briga de gente que convive sob o mesmo teto, qualquer palavra – e, em breve, qualquer olhar – é motivo de novas explosões. Agora vivemos os maus humores decorrentes das recentes declarações da relatora da Comissão de Direitos Humanos para Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias da Organização das Nações Unidas – ONU, Asma Jahangir. Apavorada com o que viu por aqui em termos de direitos humanos, recomendou uma inspeção na Justiça brasileira. Talvez ela quisesse dizer em todo o governo…

Foi o que bastou para cair o teto. Como se uma mera recomendação tivesse o efeito de uma bomba, dividiram-se as águas. Os presidentes dos tribunais superiores, a começar pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, reagiram prontamente em nome da independência do Judiciário, guardião da democracia. Ato seguinte, passaram a demonstrar profundo descontentamento com os representantes do Executivo, a começar pelo presidente Lula em pessoa, por terem ficado quietos diante da sugestão infeliz. Quem cala, consente. Da parte do Executivo, esse consentimento passou a ser explícito e o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, foi além: passou a defender publicamente a proposta de inspeção da ONU. Aliás, de uma representante sua.

O debate azedo contaminou o Congresso Nacional, baixou às instâncias inferiores da própria Justiça e ganhou a televisão e os jornais. Um falso debate, pois que motivado não exatamente pela idéia de dona Asma, mas por um contencioso que ela, seguramente, desconhece. O presidente da Associação Paulista de Magistrados, juiz Renzo Leonardi, sugeriu que alguma voz governamental lembrasse a essa senhora dirigir seu foco de atenção, “quem sabe, para determinada ilha, onde se aplica a pena de morte a quem diverge do ditador de plantão”. A alusão é clara – Cuba de Fidel, onde estiveram em visita oficial os próceres do Executivo dias atrás.

E já vem à tona a questão do orçamento participativo, e já é retirado do Congresso, a pretexto de atualização, projeto que dispõe sobre o estatuto da magistratura nacional, em cujo texto se encontram alguns dispositivos tendentes a eliminar antigos privilégios da categoria, como as férias anuais de dois meses. O presidente Lula foi lembrado, mais de uma vez, que ele jurou pública e solenemente defender as instituições. Nesse “clima de satanização do Judiciário”, conforme conceito do juiz federal Fernando Moreira Gonçalves, o troco vem em forma de ataque e nem mesmo a desastrada viagem da ministra Benedita da Silva a Buenos Aires é poupada. O presidente do Tribunal Superior do Trabalho – TST, Francisco Fausto, recomendou aos tribunais regionais que se neguem a permitir a tal inspeção…

Ela cheira a controle externo. Melhor, externo e internacional. E o Judiciário aqui também está em linha de colisão com o Executivo, cujos representantes maiores têm-se manifestado favoráveis ao controle externo da magistratura. O Judiciário que temos, disse o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, “não é o dos nossos sonhos”. Lula falou em “caixa-preta”… Recebe em troca o discurso de que o Executivo é perito num tipo de discurso que desvia a atenção de suas mazelas e incompetências.

O debate seria útil à nação, caso encaminhado dentro de outra ótica. Enquanto a briga ficar nesse tom que se confunde com questões de ordem pessoais, ou decorrem do ego ferido das pessoas que respondem pelas instituições, corremos o risco de não reformar nada e – valham-nos os céus! – piorar as coisas. Aí os representantes da ONU terão ainda mais razão para vir aqui e puxar orelhas, como se o Brasil fosse esse bando de piás pançudos que ficam na esquina procurando encrenca à falta de diversão.

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