Do indispensável equilíbrio entre Instituições Constitucionais. Da inconstitucionalidade da investigação criminal conduzida diretamente pelo Ministério Público

O Estado Democrático de Direito é o pilar fundamental da estrutura constitucional brasileira e constitui o leit motiv de nossa Carta Magna. Exatamente por isso já vem insculpido em seu art. 1º. Porém, se um Estado verdadeiramente Democrático e de Direito é gerado no momento de sua inscrição na Carta Magna, ele se realiza em suas instituições, cujo funcionamento diário e cujos princípios norteadores devem expressar o equilíbrio entre os poderes e o respeito à dignidade da pessoa humana. Do contrário, o texto legal é declaração vazia, sem expressão na realidade social.

Diariamente, esse dever e anseio de respeito a todos os princípios e regras constitucionais são postos à prova, porém, há momentos em que eles se vêem seriamente ameaçados. Sentindo o delicado momento, os Institutos de estudo e desenvolvimento das ciências jurídicas abaixo-assinadas manifestam preocupação quanto ao debate proposto ao Supremo Tribunal Federal sobre a existência de poderes investigativos do Ministério Público na esfera criminal. Entendem que a questão deve ser resolvida com o respeito estrito à Constituição, de modo a manter aquilo que o Congresso Constituinte fixou como os limites claros de atuação e convivência harmônica de suas Instituições na atividade de investigação criminal. O texto constitucional deve ser mantido íntegro por nossa Corte Suprema, sua letra e seu espírito preservados, até que, em um legítimo debate legislativo, se decida pela aceitação ou não da proposta de Emenda Constitucional já em trâmite no Congresso (PEC n.º 197/2003).

Imunes a raciocínios falaciosos e distorcidos pela conveniência do momento, do exame dos artigos 129 e 144, da Constituição da República, emerge claro que ao Ministério Público cabe o controle externo da atividade policial e requisições de diligências em inquéritos policiais, enquanto à Polícia Civil (Federal e Estadual), em sua função de polícia judiciária, cabe instaurar e realizar inquéritos policiais para a investigação dos crimes.

Desvirtuar o texto claro da Constituição, dirigido à harmonia entre aquelas Instituições, através de deturpações argumentativas, é desconsiderar nossas realidades legal e forense.

Desfocar o debate para, de um lado, prevalecer a idéia de que a segurança pública está (ou deveria estar) garantida, unicamente se for atribuição exclusiva das polícias, é tão equivocado e alheio à realidade quanto, de outro lado, acreditar que uma melhor e mais eficaz investigação dos crimes está (ou deveria estar) garantida se realizada diretamente pelo Ministério Público.

A segurança pública, bem jurídico de que participam todos os membros da comunhão social, não é função ou tarefa realizável por uma única Instituição. Imaginar que segurança pública resume-se a reprimir, por aparato policial e mesmo que preventivamente, o crime ou, pior, que a segurança pública resume-se a uma apuração bem feita de um crime já ocorrido, é erro palmar. É desconsiderar que o crime não possui uma única causa. É desconsiderar todas as causas e fatores criminógenos geradores da violência e do comportamento desviante. É bom lembrar que a Constituição afirma ser segurança pública “direito e responsabilidade de todos” (art. 144, caput, da CF).

Não é menos equivocado o argumento de que com o poder investigatório atribuído ao Ministério Público o atraso das investigações seria eliminado e garantida maior eficácia e isenção da persecução. Revela essa posição a vã tentativa de esconder significativa parcela de responsabilidade do Ministério Público quanto à demora e ineficácia dos inquéritos policiais e indisfarçável atitude presunçosa e pretensiosa dessa Instituição. Todos sabem que o inquérito policial, periodicamente (no máximo de 30 em 30 dias – art. 10, CPP -, mas há representantes do Ministério Público que concedem períodos muito superiores ao previsto em lei), é enviado ao Ministério Público para “controle da atividade policial” e “requisição de diligências investigatórias” (respectivamente, art. 129, incisos VII e VIII, da Constituição Federal). Ora, se o inquérito demora e é ineficaz é porque o Ministério Público, que o controla e nele faz requisições, é tolerante, permissivo ou incentivador de suas letargia e ineficiência. É claro que qualquer atividade ineficiente, atrasada, inútil ou anacrônica não é responsabilidade exclusiva de quem a exerce, mas principalmente de quem a controla. Se o Ministério Público controla o inquérito policial e nele pode fazer requisições, deve ditar as regras de seu desenvolvimento. E se esse não se dá a contento, não podem os desvios ou atrasos ser imputados apenas à Instituição Policial.

O Ministério Público não afirma querer abarcar todos os casos de investigação criminal hoje afeitos à Polícia, uma vez que é irrefutável sua falta de estrutura para tal. Haveria uma “escolha” – por critérios insondáveis – de casos mais relevantes. Essa postura, de assunção apenas do que lhe interessar, aumenta e agrava o risco de deturpação do sistema investigativo policial traçado na Constituição. Além das razões políticas, casuísticas e eleitoreiras, essa seletividade criará três problemas insolúveis, críticos e de raiz: a) o primeiro é de definição. Quem definirá a relevância do caso e quais os critérios de definição dessa relevância, sendo previsível que o critério não será certamente do bem jurídico e da natureza, gravidade e extensão da lesão às vítimas mas sim o critério da repercussão dos fatos nos meios de comunicação social; b) o segundo problema diz respeito à distinção de relevância de função e, portanto, de importância institucional: com base na crença de que há crimes mais relevantes que outros, concluir-se-á que à Polícia caberá investigar apenas os menos relevantes e, portanto, gerará um descrédito da Instituição Policial por parte de todos (população, principalmente, e também dos Poderes Públicos que pararão de investir no aprimoramento dos agentes policiais e nos equipamentos necessários); e c) o terceiro problema insolúvel está em que essa Polícia desacreditada e, interna corporis, desestimulada e com poucos recursos, não conseguirá cumprir seu papel investigativo para com a maior massa de crimes (certamente indesejada pelo Ministério Público), como os inúmeros homicídios ocorridos nas zonas de exclusão do Brasil e a criminalidade de rua e do cotidiano da vida do cidadão comum. Novamente, será a população mais carente quem pagará pelo erro de perspectiva de nossas Instituições.

Expostos os equívocos dos argumentos, não podemos fugir à realidade da necessidade de as investigações criminais serem aperfeiçoadas e dinamizadas.

Porém, a almejada eficiência investigativa somente poderá ser atingida com uma ombreada cooperação entre todas as Instituições envolvidas, com destaque ao Poder Judiciário, à Advocacia e à Defensoria Pública, todas atividades essenciais à administração e ao pleno exercício da justiça.

Aqui talvez resida o nó górdio de toda a questão: cooperação. Entre as Instituições Constitucionais não reside uma “relação de mando”, mas de co-operação. Dentro do anseio constitucional de harmonia entre Poderes e Instituições, não deve ser cooperação confundida com superioridade, substituição, exclusão ou esvaziamento de atividades conjugadamente desenvolvidas. Cooperar é trabalhar lado a lado, reconhecendo suas qualidades e defeitos em uma sinergia positiva.

O Ministério Público, assim como o Poder Judiciário, a Polícia, a Advocacia, a Defensoria Pública, os vários órgãos do Poder Executivo, as Casas Legislativas ou qualquer outro ente público ou privado, não está imune à corrupção, ao desvio de comportamento, às ingerências políticas ou pressões internas, aos erros e acertos internos. Enfim, a Instituição do Ministério Público não pode se julgar superior a qualquer outra. Quando alguma Instituição se julga mais isenta de pressões políticas, mais eficiente ou superior às demais, mais próximo está o rompimento do equilíbrio sistêmico-constitucional pela prevalência desmedida de uma sobre as demais. Ou alguém é capaz de negar que dentro do Ministério Público haja fatores políticos a mover seus membros ou falhas a serem superadas?

Maçãs podres, se as há, há em todos os cestos. Em uma relação e convivência entre Poderes e Instituições, ninguém pode se julgar melhor que ninguém. Ninguém pode avançar sobre atribuição constitucional de outrem. Assim agindo, mesmo que movido por “nobres sentimentos”, dá-se o primeiro passo para a destruição da essência de um Estado Democrático de Direito.

Associação Internacional de Direito Penal – AIDP/BR

Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM

Instituto Carioca de Criminologia – ICC/RJ

Instituto de Ciências Penais – ICP/MG

Instituto de Criminologia de Política Criminal – ICPC/PR

Instituto de Defesa do Direito de Defesa -IDDD/SP

Instituto Manoel Pedro Pimentel -IMPP/SP

Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais – ITEC/RS

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