Do Crime Licitatório

Considerações acerca dos artigos 24, 89 e 99, da Lei n.º 8.666/93.

Pretende-se apenas verificar a conduta que se ajusta aos artigos indicados, pois a tipificação dos delitos visa dar eficácia, manter e resguardar a probidade administrativa, com a finalidade de assegurar a igualdade entre os licitantes, mediante julgamento objetivo e imparcial das propostas oferecidas.

Na realidade, os crimes licitatórios são tipos criminais não contemplados no Código Penal, e, embora o sujeito ativo seja, em regra, o funcionário público, os particulares também podem ser incriminados pela prática isolada, ou solidária, de alguns dos delitos descritos na Lei n.º 8.666/93.

O artigo 89, da Lei n.º 8.666/93 tem a seguinte redação:

?Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.? (Lei 8.666/93).

Como se percebe, configura-se o crime tipificado no artigo 89 quando se dispensar ou se inexigir a licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou se deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade.

São duas, portanto, as situações que podem fazer tipificar o ilícito ali descrito, sendo que a primeira consiste na dispensa ou na declaração de inexigibilidade de licitação sem que esteja configurado um dos casos previstos no seu artigo 24, ou uma situação capaz de tornar inexigível a competição, verificando-se a segunda quando, ainda que dispensável ou inexigível o procedimento licitatório, o agente deixar de observar as formalidades pertinentes a qualquer daqueles atos.

Cabe destacar que para o crime acima referido está prevista a possibilidade de co-autoria, em relação ao particular que ?tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público?.

Não se pode considerar, portanto, ser condição sine qua non para a existência do delito atribuído ao administrador a responsabilização penal de todos os demais que hajam comprovadamente concorrido para a consumação do crime; na hipótese, o co-autor é o particular ou todos aqueles que, concorrendo para a ilegalidade, dela também se beneficiam, contratando com o Poder Público.

A exigência de licitação se assenta não apenas sobre o interesse econômico para a administração pública, com o objetivo de obter uma melhor contratação em termos materiais, mas também em valores éticos que apontam para a proibição do favorecimento a pessoas físicas ou jurídicas com quem a administração pública contrata.

É regra geral que, independente da espécie, todos os contratos realizados pela Administração Pública com terceiros o sejam mediante prévia licitação, de modo que a dispensa, ou mesmo a declaração de inexigibilidade, são exceções e, por tal, somente permitidas naquelas hipóteses expressamente indicadas no artigo 24, incisos I a XV (dispensa), e artigo 25, incisos I a III (inexigibilidade), da Lei n.º 8.666/93.

Diante de tais dispositivos, não se pode deixar de concluir ter o administrador a obrigação de cumprir precisamente o que está neles previsto, pois os artigos 24 e 25 estabelecem, de forma absoluta (numerus clausus) as situações que o autorizam a dispensar, ou inexigir, o procedimento licitatório em toda e qualquer contratação, não importando sejam firmadas com pessoas físicas ou jurídicas.

Cabe ao administrador, portanto, verificar o caso cuidadosamente para assegurar se alguma das hipóteses ali apontadas se ajusta ao caso concreto para que possa, de forma legítima, dispensar a licitação ou declarar a sua inexigibilidade.

O artigo 24, inciso IV, da Lei 8.666/93, define que nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança, a licitação pode ser dispensada, mas o prazo para dispensa não poderia ser maior que 180 dias (in verbis: IV – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;?.

Certo é que urgência não equivale a emergência, razão pela qual somente as situações críticas, inesperadas e não previsíveis, podem dar lugar à dispensa da licitação, e ainda assim desde que o objeto a ser contratado, na hipótese de bens e serviços, possa ser integralmente cumprido em 180 dias.

O referido dispositivo de ser interpretado de forma restrita, razão pela qual, não estando o Município, ou o Estado, em situação de emergência, não se justifica, em hipótese alguma, a dispensa da licitação, sendo de se destacar que o referido dispositivo (artigo 24, inciso IV) diz respeito tão-somente aos casos em que o decurso do tempo necessário ao procedimento licitatório impediria a adoção de medidas indispensáveis para evitar danos irreparáveis.

Note-se não ser suficiente alegar-se a existência de emergência, porquanto é imprescindível se demonstre, eficaz e cabalmente, que a contratação visa o atendimento efetivo para evitar que o dano se concretize, o que exige que a Administração comprove não apenas a real necessidade da contratação, mas também a sua efetiva utilidade.

A desídia do Administrador não pode justificar e muito menos tornar possível seja lesado ou danificado o interesse público, sendo obrigatória a realização de licitação, inclusive para a prestação de serviços públicos, pois ?incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos?, nos termos do artigo 175, inciso I, da Constituição Federal.

A dispensa ou a situação de inexigibilidade da licitação estão submetidas a um procedimento especial e simplificado para a escolha do contrato que melhor atenda a Administração, sendo inadmissível que simplesmente se faça constar, de forma genérica, a impossibilidade material de licitar para justificar a contratação diretas porque, como dito, é absolutamente necessário a expressa justificativa para a dispensa da licitação, .

Em relação aos ?interessados?, é certo que o benefício decorrente da dispensa ou da inexigibilidade ilegal resulta do próprio ato de contratar para a prestação do serviço de forma remunerada, consumando-se a ilegalidade com a aceitação da contratação ilegal.

Em face da regra do artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, onde se verifica que o procedimento licitatório para aquisição de materiais pela Administração é a regra, a sua dispensa constitui a exceção.

Daí porque as hipóteses referidas no artigo 24, da Lei n.º 8.666/93 devem ser interpretadas e aplicadas pelo administrador de maneira restritiva, sob pena de incorrer nas sanções do seu artigo 89, caput.

A pena de multa consiste, nos termos do artigo 99 e parágrafos, da lei de regência, no pagamento de quantia fixada na sentença e calculada em índices percentuais, cuja base corresponderá ao valor da vantagem efetivamente obtida ou potencialmente auferível pelo agente, não podendo ser inferior a 2% nem superior a 5% do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação, revertendo o produto da sua arrecadação, conforme o caso, à Fazenda Federal, Distrital, Estadual ou Municipal.

Cabe observar, ainda, que, salvo motivação expressa posta na decisão, a pena de multa deve guardar, obrigatoriamente, correlação com a pena corporal aplicada, porquanto ambas dependem, em tese, das circunstâncias judiciais apuradas.

Feitas estas considerações, cabe concluir que:

a) O administrador, como ordenador de despesas, não pode deixar de ser responsabilizado criminalmente, nos termos do artigo 89, da Lei n.º 8.666/93, quando burla a exigência de licitação;

b) Ocorre o delito capitulado no artigo 89, da Lei n.º 8.666/93, se não restou caracterizada a urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares.

c) Nos termos do artigo 99, caput, e parágrafo 1.º, da Lei n.º 8.666/93, a multa cominada no seu artigo 89 deve ser fixada em índices percentuais que não poderão ser inferiores a 2% (dois por cento), nem superiores a 5% (cinco por cento) do valor do contrato licitado ou celebrado com dispensa ou inexigibilidade de licitação, revertendo o produto da sua arrecadação, conforme o caso, à Fazenda Federal, Distrital, Estadual ou Municipal.

Rogério Coelho é desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Paraná.

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