Direito Penal do inimigo

Günter Jakobs, tido como um dos mais brilhantes discípulos de Welzel, foi o criador do funcionalismo sistêmico (radical), que sustenta que o Direito penal tem a função primordial de proteger a norma (e só indiretamente tutelaria os bens jurídicos mais fundamentais). No seu mais recente livro (Derecho penal del enemigo, Jakobs, Günter e Cancio Meliá, Manuel, Madrid: Civitas, 2003), abandonou claramente sua postura descritiva do denominado Direito penal do inimigo (postura essa divulgada primeiramente em 1985, na Revista de Ciência Penal – ZStW, n. 97, 1985, p. 753 e ss.), passando a empunhar (desde 1999, mas inequivocamente a partir de 2003) a tese afirmativa, legitimadora e justificadora (p. 47) dessa linha de pensamento.

Resumidamente, dos seus escritos podemos extrair o seguinte:

Quem são os inimigos?: criminosos econômicos, terroristas, delinqüentes organizados, autores de delitos sexuais e outras infrações penais perigosas (Jakobs, ob. cit., p. 39). Em poucas palavras, é inimigo quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias cognitivas de que vai continuar fiel à norma. O autor cita o fatídico 11 de setembro de 2001 como manifestação inequívoca de um ato típico de inimigo.

Como devem ser tratados os inimigos?: o indivíduo que não admite ingressar no estado de cidadania, não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa. O inimigo, por conseguinte, não é um sujeito processual, logo, não pode contar com direitos processuais, como por exemplo o de se comunicar com seu advogado constituído. Cabe ao Estado não reconhecer seus direitos, “ainda que de modo juridicamente ordenado – p. 45ª (sic). Contra ele não se justifica um procedimento penal (legal), sim, um procedimento de guerra. Quem não oferece segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não deve esperar ser tratado como pessoa, senão que o Estado não deve tratá-lo como pessoa (pois do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas).

Fundamentos (filosóficos) do Direito penal do inimigo: (a) o inimigo, ao infringir o contrato social, deixa de ser membro do Estado, está em guerra contra ele; logo, deve morrer como tal (Rousseau); (b) quem abandona o contrato do cidadão perde todos os seus direitos (Fichte); (c) em casos de alta traição contra o Estado, o criminoso não deve ser castigado como súdito, senão como inimigo (Hobbes); (d) quem ameaça constantemente a sociedade e o Estado, quem não aceita o “estado comunitário-legal”, deve ser tratado como inimigo (Kant).

Características do Direito penal do inimigo: (a) o inimigo não pode ser punido com pena, sim, com medida de segurança; (b) não deve ser punido de acordo com sua culpabilidade, senão consoante sua periculosidade; (c) as medidas contra o inimigo não olham prioritariamente o passado (o que ele fez), sim, o futuro (o que ele representa de perigo futuro); (d) não é um Direito penal retrospectivo, sim, prospectivo; (e) o inimigo não é um sujeito de direito, sim, objeto de coação; (f) o cidadão, mesmo depois de delinqüir, continua com o status de pessoa; já o inimigo perde esse status (importante só sua periculosidade); (g) o Direito penal do cidadão mantém a vigência da norma; o Direito penal do inimigo combate preponderantemente perigos; (h) o Direito penal do inimigo deve adiantar o âmbito de proteção da norma (antecipação da tutela penal), para alcançar os atos preparatórios; (i) mesmo que a pena seja intensa (e desproporcional), ainda assim, justifica-se a antecipação da proteção penal; (j) quanto ao cidadão (autor de um homicídio ocasional), espera-se que ele exteriorize um fato para que incida a reação (que vem confirmar a vigência da norma); em relação ao inimigo (terrorista, por exemplo), deve ser interceptado prontamente, no estágio prévio, em razão de sua periculosidade.

Dois Direitos penais: de acordo com a tese de Jakobs, o Estado pode proceder de dois modos contra os delinqüentes: pode vê-los como pessoas que delinqüem ou como indivíduos que apresentam perigo para o próprio Estado. Dois, portanto, seriam os Direitos penais: um é o do cidadão, que deve ser respeitado e contar com todas as garantias penais e processuais; para ele vale na integralidade o devido processo legal; o outro é o Direito penal do inimigo. Este deve ser tratado como fonte de perigo e, portanto, como meio para intimidar outras pessoas. O Direito penal do cidadão é um Direito penal de todos; o Direito penal do inimigo é contra aqueles que atentam permanentemente contra o Estado: é coação física, até chegar à guerra. Cidadão é quem, mesmo depois do crime, oferece garantias de que se conduzirá como pessoa que atua com fidelidade ao Direito. Inimigo é quem não oferece essa garantia.

A pena de prisão tem duplo significado: um simbólico e outro físico: (a) o fato (criminoso) de uma pessoa racional significa uma desautorização da norma, um ataque à sua vigência; a pena, por seu turno, simbolicamente, diz que é irrelevante ter praticado essa conduta (para o efeito de se destruir o ordenamento jurídico); a norma segue vigente e válida para a configuração da sociedade, mesmo depois de violada; (b) a pena não se dirige ao criminoso, sim, ao cidadão que atua com fidelidade ao Direito; tem função preventiva integradora ou reafirmadora da norma; (c) A função da pena no Direito penal do cidadão é contrafática (contrariedade à sua violação, leia-se, a pena reafirma contrafaticamente a norma); (d) no Direito penal do inimigo procura predominantemente a eliminação de um perigo, que deve ser eliminado pelo maior tempo possível; (e) quanto ao significado físico, a pena impede que o sujeito pratique crimes fora do cárcere. Enquanto ele está preso, há prevenção do delito (em relação a delitos que poderiam ser cometidos fora do presídio).

As críticas que já estão sendo dirigidas contra o denominado Direito penal do inimigo serão abordadas em dois artigos subseqüentes. A eles remeto o estimado leitor.

Luiz Flávio Gomes

é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e Parecerista e diretor-presidente da TV Educativa IELF (1.ª Rede de Ensino Jurídico Telepresencial da América Latina com cursos ao vivo em SP e transmissão em tempo real para todo país –
www.ielf.com.br).

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