Deus e o Diabo na terra de Sam

O brasileiro Cidade de Deus ficou fora das indicações para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Não é para ficar chateado, primeiro porque o Oscar é imprevisível e coleciona injustiças; segundo porque, se entrasse na lista, dificilmente ganharia. Os critérios da Academia são inescrutáveis até certo ponto, interesseiros até outro, mas no fundo tem fidelidade com a hegemonia e pujança da indústria cinematográfica norte-americana.

É curioso como um filme insosso como O Quatrilho foi indicado e Cidade de Deus, não. Houve quem, entre os críticos, considerasse que a Academia não se interessou por um filme de violência como o brasileiro. Bobagem! Se fosse assim O Resgate do Soldado Ryan, um show de carnificina, violência e estupidez, a estupidez da guerra, claro, não teria levado cinco estatuetas em 1999. O Quatrilho recebeu indicação como afago de Hollywood a um país de grande público e até então com uma produção medíocre de filmes.

O Brasil deixou de fazer filmes depois de Fernando Collor arrasar não só a cinematografia do país, como o próprio país. O cinema brasileiro ficou vários anos no limbo. A retomada foi Carlota Joaquina e O Quatrilho apareceu como algo curioso, interessante. Mas foi Central do Brasil que mostrou ser possível produzir filme de qualidade no país, obter empatia com o público e assim sugerir a possibilidade de uma indústria de cinema. Tanto que, na sequência, se tentou criar uma lei (como sempre acontece no Brasil) que protegesse o produto nacional do similar estrangeiro. Apesar de a fé cega brasileira em leis, normalmente não cumpridas, não ser partilhada pelos EUA, a reação americana foi imediata. O representante do cinema americano no Brasil disse: “Não permitiremos que vocês prejudiquem nossos interesses”. Então, a partir daí, ficou menos interessante afagar o cinema brasileiro, porque está levando a sério sua criatividade, competência e pode ser concorrente, pelo menos no Brasil. Uma indústria brasileira de cinema significa que estes filmes vão disputar as salas de exibição, em nosso país, com a produção de Hollywood. Aí, então, estaremos contrariando, em nosso país, os interesses norte-americanos.

Por isso à Academia de Hollywood não interessa incentivar o nosso cinema e dificilmente ganharemos um Oscar que não seja periférico. O prêmio não tem importância quanto ao mérito, mas serve de chamariz para crítica e público em todo o mundo perceber a existência de uma cinematografia diversificada e que não se resume a Central do Brasil e a apenas uma estética.

Na realidade, justamente por ser um belo filme, Cidade de Deus é um demônio na terra de Tio Sam. E se não é exorcizado, melhorar ignorá-lo. Reconhecer o mérito desta obra seria incentivo a que se fizessem outras. E, mais outras. Glauber Rocha anteviu esta guerra e vociferou contra Tio Sam. Mas Glauber era político, um gênio e talvez ingênuo, como todo revolucionário, porque defendia uma estética nacional própria. E com ela não assustou. Os novos cineastas brasileiros engoliram a estética americana e enfrentam o bicho com a mesma fantasia. Pode-se dizer, à maneira de Oswald de Andrade, um ato antropofágico. Ou, na linguagem do mercado, o filme tem qualidade. Mas, parodiando, Raul Seixas, os novos cineastas estão transando até com lobisomem e aprendendo o jogo dos ratos.

Edilson Pereira (edilsonpereira@pron.com.br) é editor em O Estado

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