Da iniciativa legislativa pela Ordem dos Advogados do Brasil

No início do século XXI, quando as instituições democráticas brasileiras ainda se encontram em processo de consolidação, deve a Ordem defender continuamente o direito, lutando pela democracia e pela observância da Constituição Federal pelo Estado.

Conforme o art. 44 da Lei n.º 8.906 de 1994, a Ordem é serviço público, dotada de personalidade jurídica, tendo por finalidade a defesa da Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, devendo pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas. Como um dos instrumentos para realizar essas tarefas, a Ordem tem competência para propor Ação Direta de Inconstitucionalidade.

O controle concentrado de constitucionalidade, realizado pelo Supremo, é legiferação negativa(1), ou seja, declara-se que uma lei, apesar de promulgada pelo povo e com respeito ao princípio da maioria, não está de acordo com a Carta constitucional e por isso não pode existir no ordenamento jurídico.

Com um certo reducionismo, tendo em vista o art. 103, VII da Carta, afirma-se que a Ordem poderá iniciar o processo de legiferação negativa, tendo em vista a ?defesa da Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito (…)?, como a própria lei determina.

Contudo, não é admissível que uma instituição como a Ordem, que tem a função social de representar interesses da sociedade civil, não tenha, haja vista a necessidade do povo participar do discurso(2), o poder de iniciativa de lei.

A iniciativa de processo legislativo no Congresso, apesar da Constituição trazer um amplo rol de pessoas competentes, concentrou tal poder no próprio Estado, esvaziando a participação política mais ativa da sociedade. Uma breve referência à iniciativa popular de lei é encontrada em apenas um dispositivo(3).

Sendo assim, uma abertura da iniciativa para determinados entes de representação civil é indispensável ao processo de consolidação democrática pelo qual está passando o Estado brasileiro, que ainda sofre conseqüências com o processo de amadurecimento.

A Ordem é serviço público indispensável à garantia da Constituição e do Estado de direito, porém não pode se auto-regular por lei ou apresentar projetos legislativos de sua competência, estando dependente de vontades e interesses partidários. É defeso a ela a pretensão de regulação da fiscalização da profissão, prevista na Constituição como indispensável à administração da justiça (art. 133).

Ao Ministério Público, como função essencial à justiça, cabe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, Constituição), podendo, para tanto, propor, entre outras, ação de inconstitucionalidade. Além disso, detém a competência para iniciativa de lei complementar que estabelecerá a organização, as atribuições e o estatuto (art. 128, § 5.º, Constituição).

Para que realize suas tarefas constitucionais, outorgaram-se ao Ministério Público amplos poderes, especialmente quanto à capacidade de auto-organização, para que sua independência fosse garantida.

O que pode ocorrer em alguns casos é que, para alcançar seus objetivos, a Ordem precise recorrer ao auxílio de partidos políticos, pois somente eles poderão concretizar sua vontade mediante a proposição de projeto de lei. Certamente, não será um ato político altruísta. E pior: a Ordem estará sujeita a leis decorrente de projetos de parlamentares que pouco conhecem a profissão de advogado e podem pretender, com um mote populista, diminuir as atribuições da Ordem, como, por exemplo, a proposta de extinção do Exame, que é necessário para que se mantenha um padrão de qualidade dos profissionais.

Para que não pareça uma idéia visionária, mostram-se aqui sistemas similares. No direito português, no qual projetos legislativos que interessam ao exercício da advocacia deverão passar pela análise da Ordem. Com uma redação parecida com a brasileira, o Estatuto português prevê que à Ordem caberá a defesa das instituições democráticas, além de promover o desenvolvimento do direito, opinando sobre projetos de lei que interessem ao exercício da advocacia(4).

Ademais, em Portugal, a Ordem integra a ?administração autônoma? do Estado, não a administração indireta, estando numa posição de independência em relação aos órgãos estatais(5). Não é de se negar que no Brasil também seja assim, apesar de, formalmente, ser serviço público(6).

É uma oportunidade para o Estado brasileiro inovar as instituições que são base da democracia, cujo funcionamento deverá ser expandido e mais eficiente. Portanto, é importante, primeiro, que ela não possua vinculação com partidos políticos, podendo, livre de interesses alheios, alcançar seus objetivos. Deverá ser suprapartidária, ao contrário do que muitos equivocadamente entendem. Segundo, é preciso retirar do Estado a competência de iniciativa de lei que diz respeito à Ordem e à profissão de advogado. Pela independência da Ordem, se faz necessária a reflexão sobre o tema.

Notas

(1) Conforme Kelsen, ?tanto quanto se possa distingui-las, a diferença entre função jurisdicional e função legislativa consiste antes de mais nada em que esta cria normas gerais, enquanto aquela cria unicamente normas individuais. Ora, anular uma lei é estabelecer uma norma geral, porque a anulação de uma lei tem o mesmo caráter de generalidade que sua elaboração, nada mais sendo, por assim dizer, que a elaboração com sinal negativo e portanto ela própria é uma função legislativa?. (KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 151-152)

(2) Habermas afirma que pelo discurso poderá ser alcançado o consenso e, ademais, a legitimidade das decisões legislativas. Conforme o autor, o direito moderno deve manter um nexo interno com a força socialmente integradora do agir comunicativo, ou seja, ?o processo legislativo democrático precisa confrontar seus participantes com as expectativas normativas das orientações do bem da comunidade, porque ele próprio tem que extrair sua força legitimadora do processo de um entendimento dos cidadãos sobre regras de sua convivência?. Para ele, ?a fonte de toda legitimidade está no processo democrático de legiferação?, cujo fundamento é o princípio da soberania do povo. (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. v. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1997. p. 115.); no mesmo sentido: ALEXY, R. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales. 2001; DUARTE, Écio Oto Ramos. Teoria do Discurso e Correção Normativa do Direito. São Paulo: Landy. 2004.

(3) Art. 61, § 2.º da Constituição Federal.

(4) ?A prossecução necessária de interesses públicos pela Ordem dos Advogados resulta das atribuições que lhe confere o artigo 3.º do EOA [Estatuto da Ordem dos Advogados], designadamente a de defender o Estado de direito, e os direitos e garantias individuais e colaborar na administração da justiça (alínea a), a de promover o acesso ao conhecimento e aplicação do direito (alínea g) e a de contribuir para o desenvolvimento da cultura jurídica e aperfeiçoamento da elaboração do direito, devendo ser ouvida sobre os projectos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e ao patrocínio judiciário em geral (alíneas i e j)?. (COSTA, Orlando Guedes da. Direito Profissional do Advogado. Noções elementares. 3.ª ed. Coimbra: Almedina, 2005, p. 50).

(5) ?Como associação pública, a Ordem dos Advogados integra, não a administração indirecta, mas a administração autônoma do Estado, pois a administração indireta está sujeita à superintendência e tutela do Governo, enquanto a administração autônoma apenas está submetida à tutela do Governo, residindo a principal diferença entre ambas em que a superintendência consiste num poder de orientação, que o Governo não tem sobre as associações, designadamente sobre a Ordem dos Advogados que o próprio EOA considera independente e autônoma do Estado, enquanto a tutela se traduz num poder de fiscalização, podendo a tutela ser apenas uma tutela de legalidade, como a que se exerce sobre as associações públicas ou as autarquias locais, ou uma tutela também de mérito, como a que se exerce sobre institutos públicos e empresas públicas, que integram a administração estadual indirecta?. (COSTA, O. G. Obra citada, p. 52-53).

(6) Nesse sentido, Ação Direta de Inconstitucionalidade, cujo relator foi o Min. Eros Grau (Jun/06).

Rodrigo Luís Kanayama é advogado e mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná.

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