Crise e democracia

O secretário-executivo da Cepal, José Antonio Ocampo, falando ao jornal El País, da Espanha, disse que a crise econômica que afeta a América Latina debilita a democracia na região. Sua observação, lida por observadores estrangeiros à distância, sem um melhor conhecimento da região e de suas diferenças econômicas e políticas, pode provocar o indesejável equívoco de nivelar por baixo todos os países latino-americanos.

Sabemos que na América Latina existem talvez mais diferenças que similitudes e um prognóstico como o da autoridade da Cepal pode ser verdadeiro em um ou dois países e absolutamente falso em outros.

Existem riscos ao sistema democrático em especial na Argentina e na Venezuela, por problemas de natureza econômica e também política. Na primeira, uma recuperada democracia, depois de muitos anos de ditaduras, enfrenta uma crise econômica de tal profundidade e gravidade que põe à mostra a fragilidade do seu equilíbrio político. Os problemas econômicos argentinos resultam de reiterados erros, das suas contradições políticas, do saudosismo de uma ditadura de antanho, a de Peron, e da dificuldade que os políticos argentinos sempre tiveram quando é hora de negociar. Eles não têm a tradição da negociação, como acusam seus próprios analistas.

Hoje, a crise econômica é tão grave que, para superá-la, não tem pejo em romper com mandamentos democráticos, alternando presidências e rasgando textos legais em nome de prementes necessidades. Já há quem afirme que não existe possibilidade de salvar o país enquanto não se fizerem eleições livres, dando respaldo político e democrático aos seus governantes às duras políticas de ajuste que se impõem.

Pode-se também identificar a Venezuela como um país latino-americano com a democracia em risco. E aí não é exclusiva, nem por problemas econômicos, mas por deliberados rompimentos do tecido democrático, tanto pelo presidente eleito Hugo Chávez como por forças que se lhe opõem.

Outros países latino-americanos apresentam democracias não-consolidadas, como o Paraguai, mas aí o risco de retrocessos não resulta de problemas econômicos, embora efetivamente existam. No Brasil, nada indica possam os problemas econômicos debilitar a democracia. As forças armadas, que em 1964 romperam a ordem democrática, e as de extrema-esquerda, civis, que até há pouco pregavam a revolução, hoje se enquadram no sistema democrático e são seus partícipes e garantidores. A democracia brasileira, mesmo com a crise ou até por causa dela, vem se fortalecendo a cada dia e não existem ameaças de rompimento. As eleições deste ano serão realizadas, o eleito tomará posse e governará, seja quem for. Não existem vetos, nem imposições.

Não obstante, é de se reconhecer que no prognóstico equivocado do especialista da Cepal existem verdades que precisam ser meditadas. Disse ele ao jornal espanhol que a “realidade é que uma parte importante da população tem a percepção de que o crescimento econômico não lhe deixa frutos”. Isso é verdade e aí está uma ampla massa de manobra para um aventureiro político, do tipo salvador da pátria, como buscou ser o atual presidente da Venezuela. Num conceito mais amplo, democracia deve incluir a inexistência da miséria nos níveis a que parecemos conformados a conviver. Nessa ótica, a democracia não está ameaçada na América Latina. Ela nem existe ainda.

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