Criminologia e política criminal: um novo horizonte teórico

Há muito, a doutrina penal se ressente de uma explicação mais substanciosa para o crime. Com efeito, o complexo existencial humano, de proteiformes manifestações, entre picos de lucidez e depressões de inconsciência, não é satisfatoriamente explicado por uma dogmática encastelada no árido universo das normas (ou, para utilizar a expressão de Zaffaroni(1), no impenetrável "mundo do esquizofrênico"). Malgrado sua repercussão acadêmica, impende aquiescer que o conceito analítico de crime – ação típica, antijurídica e culpável – não é suficiente para satisfazer a exigência de uma explicação plausível do comportamento criminoso. Não raro, a concepção de crime, tal qual é difundida nos bancos acadêmicos, afigura-se primária e ginasiana, quando cotejada com as modernas elucubrações da psicanálise e com as recentes descobertas da (meta)física. É que (como é consabido) a conduta humana transcende e extravasa os estreitos conceitos da dogmática penal, de modo que não pode ser asfixiada pela redoma analítica sob a qual alguns pretendem aprisioná-la. Urge, pois, que novas categorias conceituais sejam trazidas para o continente jurídico-penal a fim de enriquecer os paradigmas pelos quais a doutrina entrevê o comportamento humano. Não se trata de negar a idéia analítica do crime. Refutá-la, jamais. Aperfeiçoá-la, sim. Na era pós-freudiana, com os adventos da psiquiatria sobre o arquétipo humano, permanecer com a simples idéia de que crime é, tão somente, ação típica, antijurídica e culpável, seria um subterfúgio evasivo para negligenciar os avanços da ciência humana.

É aí que se inserem duas perspectivas do direito penal: a Criminologia e a Política Criminal.

Na dicção de Franz Von Lizst(2), as ciências criminais perfazem uma enciclopédia que pode ser vista a partir de três recortes epistemológicos: (a) a dogmática estrita, como substrato científico do direito penal; (b) a criminologia, como plataforma para as investigações sobre as origens do crime e da delinqüência; e (c) a política criminal como trampolim para a concreção de medidas que visem diminuir a criminalidade. Segundo o penalista lusitano, Jorge de Figueiredo Dias(3), "política criminal, dogmática jurídico-penal e criminologia são assim, do ponto de vista científico, três âmbitos autônomos, ligados porém, em vista do integral processo da realização do direito penal em uma unidade teleológico-funcional". De igual modo, Claus Roxin(4) admite que "política criminal, prevenção e fins da pena possuem um direito de argumentar também na dogmática jurídico-penal", pois "são idéias reitoras que podem constituir uma ponte de ligação com a criminologia".

Aliás, as comportas da criminologia e da política criminal têm sido o canal de comunicação da dogmática penal com outros ramos do saber humano. É por esse flanco que o professor Alessandro Baratta(5) lança as bases de sua Criminologia Crítica e o mestre Joe Tennyson Velo(6) solidifica os alicerces de sua Psicologia Analítica. É pela política criminal que o doutrinador Antonio Beristain(8) alija as raízes de seus estudos sobre a Vitimologia. Nesta mesma seara, o laureado mestre Jacinto Nelson de Miranda Coutinho(8) tem importado conceitos da Psiquiatria para preencher a lacuna da dogmática em relação à atividade jurisdicional. De igual modo, o notável professor Juarez Cirino dos Santos(9) buscou na Sociologia Criminal a ampliação dos horizontes científicos para fundamentar a sua Moderna Teoria do Fato Punível.

Durante muito tempo predominou a idéia atomista de ciência. A cognição científica era aquela que conseguia individualizar o núcleo embrionário de um conhecimento despoluído de todos os elementos que gravitavam em torno sua órbita. Foi assim que se alcançou o átomo, na física; a célula, na biologia; a fração numérica, na matemática; a vírgula, na gramática. Todavia, com o passar dos anos, o paradigma científico mudou. Nasceu a idéia de estruturalismo. As ciências passaram a conceber a idéia de todo e de conjunto, como busca do conhecimento. Hodiernamente, a contextualização e a visão estrutural fazem parte da moderna dialética que estuda o fenômeno jurídico, sob o prisma da complementaridade, de que falam Miguel Reale(10) e Luiz Fernando Coelho(11).

Daí essa noção de tridimensional das ciências penais. De um lado, o aporte dogmático que lhe confere estabilidade científica. Noutro vértice, o arrimo criminológico que lhe garante investigações empíricas. Por fim, o supedâneo político-criminal que lhe assegura o retorno às soluções concretas. Essas três faces constituem um poliedro inquebrantável que se consubstancia na penalística contemporânea. Esse influxo de três canais a um mesmo ponto de convergência fomenta uma efervescência científica que se oportuniza uma abertura a enfoques multidisciplinares.

Dentro dessa abertura, cabe destacar o oportuno trabalho da lavra do professor Doutor Cândido Furtado Maia Neto em parceria com o médium Carlos Lenchoff que observa a Criminalidade e a Doutrina Penal sob a ótica da Filosofia Espírita(12). É interessante observar essa ampliação do leque de convívio dos conceitos penais, ora tendentes à psicanálise, ora inclinados à sociologia e agora voltados à filosofia espírita. Quanto mais dilatado for o espectro relacional do direito penal com outros ramos do saber humano, tanto maior será a contribuição da jurisprudência para a sociedade. Por outro lado, o isolamento hermético da doutrina penal em relação às ciências que lhe tangenciam atravancam a evolução do pensamento criminal. É por isso que o jurista moderno deve estar aberto às múltiplas manifestações do conhecimento: para entender mais e mais o comportamento humano.

Notas:

(1) ZAFFARONI, Eugenio Raul. Prefácio ao Livro o Tempo como Pena de Ana Messuti. Trad. de Tadeu Antonio Dix Silvia et alii. São Paulo: RT, p. 13.

(2) LISZT, Franz Von. Tratado de Derecho Penal. Trad. de Luis Jimenez de Asua. Vol. II. Madrid: Reus, pp. 12-71.

(3) DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: RT, 1999, p. 49.

(4) ROXIN, Claus. Sobre a Fundamentação Político-Criminal do Sistema Jurídico-Penal. Trad. de Luís Greco. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. XXXV. São Paulo: RT, 2001, p. 27.

(5) BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 2. ed. Trad. de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 161. Segundo Baratta, a criminalidade deixou de ser uma questão ontológica para ser uma pecha atribuída a uma categoria de indivíduos, mediante dupla seleção: a seleção dos bens jurídicos protegidos e a seleção dos indivíduos a serem estigmatizados.

(6) VELO, Joe Tennyson. Criminologia Analítica. São Paulo: IBCCrim, 1998, p. 15. Segundo o professor Joe Tennyson Velo, a descoberta do inconsciente não pode ser menosprezada como realidade para a compreensão da performance da personalidade.

(7) BERISTAIN, Antonio. Nova Criminologia à Luz do Direito Penal e da Vitimologia. Trad. de Cândido Furtado Maia Neto. Brasília: UNB, 2000.

(8) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Jurisdição, Psicanálise e Mundo Neoliberal, in Direito e Neoliberalismo. Curitiba: EdIBEJ, 1996, pp. 41-71.

(9) SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.

(10) REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, pp. 90-91.

(11) COELHO, Luiz Fernando. Teoria da Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, pp. 123-131.

(12) MAIA NETO, Cândido Furtado e LENCHOFF, Carlos. Criminalidade, Doutrina Penal e Filosofia Espírita.

Adriano Sérgio Nunes Bretas é bacharel em direito pela Faculdade de Direito de Curitiba

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